Noruega e Lampedusa
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Na aparência, a Noruega nada tem a ver com o Mar Mediterrâneo, ela e ele, respectivamente, ao norte e ao sul do continente europeu. Milhares de quilômetros separam a Ilha de Lampedusa, no sul da Itália, e a capital norueguesa de Oslo. Mas a barbárie de Anders Behring Breivik, um fanático fundamentalista norueguês, de 32 anos, acaba de aproximar esses dois pontos. Resultado do atentado à bomba e do massacre enlouquecido: 76 cadáveres e uma população tradicionalmente pacífica em estado de choque.
Estado de choque que ultrapassa todas as fronteiras e contamina os habitantes das mais diversas nações. Como entender o que se passa na cabeça desse cidadão norueguês, segundo o qual “estava prestando um serviço ao próprio país e à Europa”? O que tem a ver semelhante barbárie com o atual contexto da economia globalizada e o deslocamento massivo de pessoas, famílias e grupos inteiros? Dá para conciliar a idéia de um mundo que se abre a todos os povos e culturas, por um lado, e, por outro, rechaça violentamente a mistura das raças, citando como exemplo a mestiçagem brasileira?
O mundo se põe em movimento nos trilhos do trem, metáfora utilizada pelo historiador Peter Gay referindo-se ao século XIX. Mas o decorrer do século XX e o início do XXI só fazem alargar os horizontes dos que se põem em marcha. De fato, as migrações de massa parecem crescer em intensidade, diversidade e complexidade. Se a intensidade revela e preconiza estatísticas cada vez mais elevadas de quem se move, e a diversidade desvenda novas motivações para tais deslocamentos, a complexidade desenha um mapa onde os rumos se cruzam e recruzam nas mais diferentes direções.
No panorama migratório, ele também progressivamente globalizado, novas situações entram em cena. Quatro “Rs” poderiam nos orientar no encalce de sua compreensão. No primeiro, se trata de identificar os rostos dos novos migrantes, imigrantes e emigrantes, tais como jovens e mulheres em busca de melhores oportunidades de vida, refugiados políticos e ambientais, “desplazados” pela violência, estudantes, técnicos de empresas transnacionais, trabalhadores em movimento ou temporários, camponeses em busca da cidade, retirantes, itinerantes, ciganos, parquistas, circenses, turistas… Numa palavra, reponde à pergunta de “quem migra atualmente?”.
Em segundo lugar, a tarefa é traçar as rotas de quem se lança à estrada. Neste caso a pergunta é “de onde e para onde as pessoas se deslocam?” As respostas são extremamente variáveis. Os pontos de origem, trânsito e destino se mesclam e se confundem. São poucas as nações que, de alguma forma, não estejam hoje envolvidas com o fenômeno migratório. Claro que prevalece a rota do sul para o norte, dos países periféricos em direção aos países centrais. Mas, a todo o momento, outras direções se estabelecem. Além disso, os caminhos costumam ser sinuosos, seguir atalhos inesperados, de acordo com o grau maior ou menor de rigidez das leis migratórias. Cada vez menos os movimentos de massa se parecem àqueles do século XIX, com origem e destino praticamente preestabelecidos. Nos dias atuais, as rotas seguem vias não lineares, mas tortuosas e estrategicamente adaptáveis ao rigor da vigilância. Qualquer mapa gráfico da mobilidade humana atual há de ser um pergaminho complexo de setas e pontos de saída e partida, difícil de decifrar.
O terceiro “R” remete-nos às raízes da migração. A pergunta é “por que as pessoas deixam a terra que as viu nascer e onde enterraram seus ancestrais?”. Estão em jogo aqui as causas da migração. Há causas relacionadas à guerra, a conflitos armados, à violência em seus diversos graus , formas e matizes; há motivações ligadas a uma estratégia de sobrevivência, para quem sair pode ser a solução, não o problema; crescem as fugas devido a “catástrofes naturais”, entre aspas porque muitas delas se devem à reação da natureza à agressividade dos modelos de desenvolvimento sobre ela; não faltam também os motivos trabalhistas, religiosos, estudantis, políticos ou de saúde… Mas o maior número de pessoas, inquestionavelmente, desloca-se por razões de ordem socioeconômica, na tentativa de um futuro mais promissor para si e para a família.
Por último, a pergunta é “que respostas oferecem aos migrantes em curso as instituições governamentais ou não governamentais (ONGs), as instituições, movimentos e organizações sociais e, entre estas, de forma particular, as Igrejas”? São múltiplas as posições e as formas de atuação. Do ponto de vista de quem se aventura a uma nossa região ou país, a ambiguidade está sempre presente. Fuga e busca se fundem, fatores de expulsão e de atração se misturam. Sonhos podem converter-se em pesadelos e estratégias resultar em sucesso. Mas uma coisa parece clara: a migração é uma porta, entre tantas, de mobilidade não só geográfica mas também social. Porta sempre aberta quando, por algum motivo, as coisas apertam na terra natal. Em geral, ninguém a deixa satisfeito, e quando o faz sonha com o retorno, mas se condições adversas o exigem, tai uma solução possível.
Do ponto de vista das autoridades em geral (governo, polícia federal, aduana, legislação), o imigrante constitui quase sempre um problema. Que o digam hoje os governantes da Itália, dos Estados Unidos, dos Estados da União Europeia e dos países ricos ou emergentes. Como conjugar necessidade de mão-de-obra fácil e barata com a “situação de clandestinidade” de milhares ou milhões de pessoas? O mundo desenvolvimento ou emergente quer trabalhadores, não cidadãos! É neste ponto que a mente doentia e medieval daquele norueguês, Anders, expressa e expõe, em sua total nudez, as contradições do chamado Primeiro Mundo em relação à avalanche de imigrantes vindos do hemisfério sul ou dos países da antiga União Soviética.
Em meio a situações novas, ao aparente caos, à crise de identidade, ao medo do encontro com a alteridade – a resposta é o fundamentalismo. Pode ser político ou religioso, ou ainda uma simbiose de ambos. De qualquer modo, é sempre violento, arrasador e macabro. Na medida em que lida com “verdades absolutas” ou com a pretensa depuração da raça, leva à morte o outro, o diferente, o estranho, o estrangeiro, seja na fogueira, no paredão, nas regiões gélidas da Sibéria, na prisão de Guantánamo, ou nos campos de extermínio de todos os tempos e lugares. Historicamente tem promovido cruzadas, pogroms, massacres e guerras santas com um lastro de sangue e terror sem precedentes. Costuma ceifar pela raiz a liberdade de cérebros e, ao mesmo tempo, cegar as massas com um fanatismo exterminador. Nem seria necessário citar os casos de Hitler, Stalin, Al Qaeda, Inquisição, Kun-Klux-Klan, a antiga Iugoslávia, o Tibete, entre tantos outros exemplos.
Preconceito, racismo, xenofobia, discriminação são alguns dos conceitos para definir semelhante intolerância e intransigência frente ao “outro”. Quando este sobe em massa do norte da África, cruza o Mediterrâneo, aporta em Lampedusa, Itália (para não falar de Portugal, Espanha, Inglaterra, México, etc.) e ameaça avançar sobre a Europa – eis apostos o cavaleiro medieval, o novo templário psicopata, para “defender a nação e o continente dos muçulmanos e do comunismo”, segundo suas palavras. Em lugar da espada, a bomba e o fuzil; em lugar do cavalo, a Internet e os meios de comunicação modernos; um nacionalismo mórbido e antiquado; em lugar da defesa dos lugares santos, a preservação de um nacionalismo mórbido e antiquado, revestido por um sentimento saudosista da cristandade. O atentado e o massacre representam um sinal, um aviso, um alerta ao povo e às autoridades.
Do ponto de vista do direito internacional de ir e vir, o que mais assusta é que o cidadão Anders não está só. Pessoas isoladas ou grupos, em geral vinculados a coligações ou partidos de extrema direita, costumam levantar a bandeira da suástica, para só citar a mais conhecida. Da mesma forma que os judeus, as feiticeiras, os infiéis, os hereges ou ateus, em determinadas épocas históricas foram perseguidos, agora são os imigrantes que aparecem como a grande ameaça à ordem estabelecida, ao status quo internacional. Novo bode expiatório, sobre o qual se atira todo o lixo de um pacifismo opulento e tedioso, enraivecido e contido, condenando-o a permanecer do lado de fora de nossas fronteiras: extra-comunitário! Uma vez mais, como sempre, o inimigo externo serve de pretexto para a unidade interna.