A Cracolândia
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Um dos retratos mais perturbadores do crime organizado e do tráfico de drogas é, sem dúvida, o conjunto de ruas, esquinas e becos que formam a cracolândia, no centro de São Paulo. Chaga viva e purulenta de uma violência que sempre rebenta no lado mais fraco da rede do narcotráfico.
Frente a essas centenas (ou milhares?) de crianças, adolescentes e jovens, marcados por feridas no corpo e na alma, muitas perguntas se levantam. O que os levou a semelhante situação? Como, em sua maioria, perderam o vínculo com suas casas? Ou pior ainda, por que muitas dessas casas também estão envolvidas na malha do crime? As crianças abandonaram a família ou esta abandonou as crianças? E quem, em última instância, abandonou crianças e famílias?
Da mesma forma que as perguntas, também as respostas são complexas. Envolvem uma série de fatores entrelaçados. Mesclam-se e se confundem elementos de ordem econômica, social, política, escolar, familiar, etc. O fato bruto é que esses usuários de droga (que não raro viram traficantes), desde tenra idade constituem o lado mais vulneráveis da pobreza, da miséria e da exclusão social.
Abandonados ao próprio destino e sem qualquer perspectiva de futuro, são facilmente arregimentados pelas organizações clandestinas e contravencionais. Praticamente desde o berço, tornam-se vítimas em potencial da violência e do crime organizado. Nem bem começam a entender o mundo que os cerca, e já a ratoeira está armada sobre suas cabeças atormentadas pela carência.
Dois caminhos convergem para uma encruzilhada perigosa e explosiva. De um lado, essas crianças, adolescentes e jovens, como plantas frágeis batidas por ventos tempestuosos, tornam-se reféns da violência estrutural e institucionalizada que marca historicamente a sociedade brasileira. Assimetrias e disparidades socioeconômicas se acumulam numa panela de pressão, até explodir sobre os setores mais fragilizados da população. Os jardins em que nascem e crescem tais plantas já se encontram infestados de ervas daninhas.
De outro lado, as vítimas se voltam contra seus agressores. Para adquirir as drogas que as defende de um “mundo cão” e as mantém num clima de euforia, precisam encontrar dinheiro. Os grandes traficantes não perdoam. Ou os usuários pagam a mercadoria no prazo determinado ou estão condenados a uma morte trágica e precoce. São poucos os que chegam à vida adulta.
E assim se completa e se fecha o círculo vicioso do crime: os reféns da violência econômica e social tornam igualmente reféns os cidadãos que se beneficiam das desigualdades históricas e estruturais. A cidade vira refém de suas vítimas, refém de suas próprias crianças, adolescentes e jovens. Em atitudes crescentemente arrojadas, eles começam vendendo os bens de seus familiares (quando ainda existe tal vínculo), avançam para furtos e roubos, terminando em assaltos à mão armada e, no fim da linha, em latrocínios, seqüestros e quadrilhas organizadas.
Os transeuntes se vêem abordados nas ruas, as casas são invadidas, as lojas saqueadas pó uma ou mais vezes, os bancos assaltados, edifícios inteiros tomados por grupos fortemente armados… Um e outro lado acabam reféns do medo. Quem será o próximo! A vida se banaliza, valendo tanto ou menos que um par de tênis, um relógio, um colar, uma jóia, ou alguns trocados para comprar uma pedra de crack.
A grande ironia desse “círculo de aço” é que a violência, frequentemente, se abate sobre as pessoas de maior intimidade, sobre aqueles que mais amamos. Filhos que, tomados pelo vício e desesperados, devastam o interior de suas próprias casas; irmãos que, na família, convivem diariamente com cenas violentas e traumáticas; mães obrigadas a reconhecer o corpo de seus “meninos” sem vida, estirados sobre o frio mármore das mesas do IML; namoradas, noivas, companheiras ou esposas expostas à fúria provocada pelo consumo de narcóticos; pais não vendo outra alternativa senão denunciar os próprios filhos; meninos e meninas amarradas com cordas e correntes aos móveis da casa, pois a família não sabe mais como controlar a situação…
Isto sem falar dos confrontos com as forças policiais, com sua colheita inevitável de “presuntos”; das guerras perpetradas entre as gangues pelo controle do tráfico, também estas deixando seus mortos pelas ruas; dos grupos de extermínio, dispostos a ceifar vidas humanas em chacinas que se repetem e que horrorizam as noites das grandes metrópoles; dos tiroteios e das balas perdidas, muitas vezes encontradas no corpo de pessoas que nem sabem porque foram feridas ou mortas.
Sociedade mutilada e que mutila. Mutilada em sua segurança, tranqüilidade e conforto, em sua justiça e solidariedade. Eterna refém de uma violência vulcânica, mas que entra em erupção e espalha chamas com espantosa frequência. E sociedade que mutila os sonhos, esperanças e o futuro de suas crianças, adolescentes e jovens, tornando-os, eles também, reféns da pobreza, do desemprego e da fome. O que os torna vítimas fáceis da droga, do vício e da violência organizada.
Cracolândia é sinônimo de devastação e de ruptura. Devastação de vidas e de famílias, ruptura de laços e do tecido social. Embora para poucos, o retorno é difícil, mas não possível. Exige, porém, uma overdose de escuta, carinho, atenção, diálogo, acolhida, amor, acompanhamento profissional – tudo ao contrário da rejeição, da exclusão e da repressão!
Teresa Norma
ago 19, 2010 @ 10:00:42
Pra mim estamos vivendo uma epidemia igual a qualquer outra doença. Precisamos buscar conhecimento e prevençao. Nao podemos fechar os olhos, precisamos enxergar essa doença e os doentes. Precisamos ajudar na cura de quem ja adoeceu. As piores doenças sao as que se manifestam na alma, nao tem feridas no corpo. Sao as mais dificeis de diagnosticar e tenho certeza de que o unico remedio é a Palavra, é Jesus.