Eleições em Terceira Dimensão
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Com o resultado do primeiro turno das eleições, os números nos convidam a refletir sobre uma tríplice dimensão. Três dimensões protagonizadas por três figuras envolvidas no pleito: Marina da Silva, Tiririca e o Presidente Lula.
Comecemos com este último. O tom dos discursos de Lula nas derradeiras semanas do processo eleitoral, acrescido de uma atitude demasiadamente palanquista, revelaram sinais inequívocos de prepotência e arrogância. Mas revelaram, por outro lado, que o cidadão está vacinado contra essa atitude do “já ganhamos”. As imagens não deixam dúvidas: a voz rouca, os gritos contra adversários que mais parecem inimigos do bem, o dedo em riste e a petulância de que “fizemos o melhor governo”. O resultado não se fez esperar: a esperança de comemorar vitória no primeiro turno foi uma vez mais adiada.
A cultura democrática brasileira avança mui lentamente, é verdade, mas avança. Ainda prevalecem o caudilhismo, o coronelismo, o autoritarismo, o centralismo, o messianismo, o personalismo, e tantos outros “ismos”. Grande parte da população ainda se deixa embalar por esse tipo de auto-suficiência dos salvadores da pátria. Mas há cidadãos – e eles tendem a crescer – que sonham, lutam e esperam por estruturas efetivamente democráticas, onde a dinâmica livre da crítica e autocrítica faz do terreno político o campo de posições e de oposições legítimas. Pessoas que entendem que o bem e mal se mesclam no calor dos debates e que já se foi o tempo de fronteiras demarcadas entre os “nossos”, patriotas irrepreensíveis, e os “outros”, inimigos do povo e da nação. Os matizes da disputa política são bem mais complexos do que os esquemas estreitos e dualistas dos gladiadores. Heróis e vilões, mocinhos e bandidos, nunca estão de um lado só – a não ser nos filmes de farwest norte-americano.
Tem mais: a terra se nutre de chuva fina, não de tempestades. As tempestades arrastam tudo pela frente e devastam o solo. Só a chuva mansa penetra e irriga para o plantio. Os gritos em praça pública, como trovões que caem de cima do palanque sobre a multidão, tendem a um efeito contrário. A agressividade do discurso pode representar um tiro no pé. Uma pedra atirada sobre o outro muitas vezes cai em primeiro lugar sobre nossa própria cabeça; as palavras envenenadas, se e quando soltas petulantemente ao vento, tendem a envenenar o coração de quem as vomita. O comportamento do Presidente Lula na reta final das eleições pode explicar algo da queda de Dilma Rousseft.
Quanto ao fenômeno Tiririca, a situação nos remete ao caso do rinoceronte Cacareco, “personagem” bem votada quando se podia escrever na cédula o nome do candidato. Hoje a urna eletrônica não permite escrever nomes, mas as figuras inusitadas e apresentam por si mesmas. Alguns jornais estrangeiros, com um olhar à distância, um tanto quanto míope mas não de todo improvável, noticiaram que o Brasil elegeu um palhaço para a Câmara Federal. Mais do que eleger um comediante, os que esses votos nos dizem é que o processo eleitoral, em grande medida não passa de uma comédia. Nos países ocidentais, a democracia como ela hoje se apresenta tornou-se um baluarte firme para a manutenção dos privilégios da classe dominante. Através de uma pretensa escolha, os eleitores legitimam o arcabouço legal das assimetrias e desigualdades socioeconômicas.
Há vícios históricos e estruturais praticamente insolúveis. O poder da mídia e do marketing, da riqueza e da renda, da publicidade e da propaganda fabrica imagens de políticos que pouco ou nada tem a ver com o cotidiano de dores, lutas e sonhos da população. Políticos devidamente maquiados e colocados na vitrine da “telinha” para a escolha “livre” dos clientes. Linguagem de mercado no mundo da política. Simultaneamente encantado, seduzido e ofuscado pelos holofotes, câmeras e microfones dessas “mercadorias fascinantes e profusamente iluminadas”, não é difícil induzir à compra – ou ao voto. Numa palavra, já que tudo não passa de uma palhaçada, porque não eleger um palhaço! Nota-se uma coerência ao mesmo tempo perversa e sardônica por trás desse mais de um milhão de votos no Tiririca.
No caso da Marina Silva (e não seria exagero acrescentar o Plínio de Arruda Sampaio), o enfoque muda completamente. Entre a maioria de um eleitorado descontente e desiludido, desencantado e desestimulado com a política, há os que procuram algo novo ou inovador. Quando se combina isso com a emergência progressiva, nas últimas décadas, da consciência ecológica, a votação crescente na Marina e no partido verde torna-se mais ou menos transparente. Cientistas, movimentos ambientalistas, políticos e organizações não governamentais não se cansam de alertar para os riscos do aquecimento global, da contaminação das águas e desertificação do solo, da devastação e uso incorreto dos recursos naturais, da emissão de gás carbônico na atmosfera. Crescem as ameaças ao meio ambiente e à vida em sua diversidade, mas cresce igualmente a responsabilidade de reverter o quadro em termos de uma economia solidária e sustentável.
Três candidaturas, três comportamentos e três resultados que atestam a complexidade do eleitorado brasileiro. E que costumam virar pelo avesso qualquer tipo de análise ou pesquisa prévia. O certo é que, em meio a uma enxurrada de escândalos e de atitudes de corrupção, com os instrumentos do projeto “ficha limpa” e da lei 9840, a população busca alternativas. Recusando a estridência dos discursos palanqueiros e do marketing, tachado de palhaçada um processo onde o povo é chamado a optar pelos já escolhidos, ou abrindo picadas inéditas nessa selva escura – a população busca algo novo!