Livro da vida de Santa Tereza
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Dias destes, com a alma ressequida e sedenta de algo indecifrável, pus-me a reler o Livro da Vida de Santa Tereza D’Ávila, prefaciado por Frei Betto (Penguin, Companhia das Letras, Editora Schwarcz, São Paulo, 2010). Logo de início, uma tríplice surpresa de caráter positivo: a alegria de respirar o oxigênio da Casa de Deus, a cegueira por falta de tal oxigênio, a distância incomensurável entre a infinita misericórdia divina e a mesquinhez da fragilidade humana. Vamos por partes.
Oxigênio da Casa de Deus
À medida que avançamos nos parágrafos e páginas do livro, torna-se claro que Tereza, desde muito cedo, acostumou-se a respirar o oxigênio da presença divina. Trazia isto, como ela mesma o atesta, da atmosfera familiar, especialmente da piedade do pai e da mãe. Falar de Deus e falar com Deus era sua “diversão” preferida. Achava perniciosos e perigosos outros tipos de conversa. Como um peixe que se nutre do oxigênio que extrai da água, a menina Tereza tirava seu alimento espiritual desse colóquio inefável sobre e com Deus.
Narra sua evolução de criança – companhias, amizades, tentações, perigos, por um lado, e graças divinas, por outro – com a consciência de quem se encontra imersa no seio de Deus. Quando se desvia desse caminho, imediatamente lhe vem uma sensação desagradável e de mal-estar. Ou de disagio, para usar palavra italiana que expressa bem certo sentimento de estranheza. Numa palavra, sentia-se estrangeira fora da Casa de Deus. Até mesmo no mosteiro, ao lado de outras monjas, desagradava-lhe que estas mostrassem um comportamento, digamos, tão profano. Procura fugir das rodas onde o assunto lhe parecia inadequado. Ao mesmo tempo, cultivava os encontros em que se respirava a presença de “Sua Majestade”.
Sua curiosidade de leitura, desde tenra idade, privilegiada os livros que falam dos santos ou de Deus. Aqui também ela indica a influência dos pais. Depois, já a partir do mosteiro, presenteava o pai com livros da mesma espécie. Impressiona o mal que lhe faz afastar-se dessa atmosfera divina e se aventura por outras veredas. É como se um sinal de alerta perturbasse sua alma tão sensível e delicada. Uma luz amarela se acendia em sua consciência e a fazia retomar o caminho. Os capítulos iniciais de sua narração revelam esse vaivém entre a luz da Casa de Deus e as trevas de um mundo que a faz tremer e temer.
Tereza sentia-se tão imbuída da presença de Deus, que nem mesmo a doença, e as dores prolongadas que ela provocava, a desviaram do horizonte traçado. A tuberculose levou-as às portas da morte, mas ela não se cansava de agradecer a Deus pelas graças recebidas. Como se a própria enfermidade significasse um estado oportuno para a intimidade com a misericórdia divina, que ela enfatiza o tempo todo. Por longos meses (ou anos?) sofre de forma atroz, ao ponto de ninguém poder tocar em seu corpo. Mas não deixa de louvar “Sua Majestade” pelo amor recíproco.
Em meio a tal oxigênio, Tereza vê na presença de Deus uma luz que ilumina seu interior, bem como seu comportamento exterior. O brilho da luz inunda seu coração, chega ao núcleo de sua alma, desvenda os segredos mais íntimos de suas entranhas. E nesse confronto, ela sublinha vezes sem fim a bonde de Deus, por uma parte, e a própria maldade, por outra. Isso a angustia passo a passo, tanto que seu relato tropeça a todo tempo com a palavra ruim aplicada ao seu modo de ser e de agir.
Longe da Casa de Deus
Comove o leitor a maneira como Tereza descreve seu afastamento da Casa de Deus. Falta-lhe o ar e ela mais parece um peixe fora d’água, batendo-se desesperadamente em busca de oxigênio. Nada melhor que suas palavras para expressar a eloqüência desse vazio de uma vida sem Deus: “Pois assim comecei, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a meter-me tanto em ocasiões de pecado muito grandes e a andar tão estragada minha alma em muitas vaidades, que eu já tinha vergonha de voltar a me aproximar de Deus em tão particular amizade como é a conversa da oração” (cap. 7, nº 1).
Inevitável, a esta altura, a lembrança do “filho pródigo” ou do “pai misericordioso” do Evangelho (Lc 15,11-32). Longe da casa paterna, sufocado por uma existência destituída de sentido, forçado a alimentar-se da comida dos porcos, o filho cai em si. Vem-lhe à memória o ambiente familiar e, com ele, a coragem de retornar e pedir perdão. Esse sentimento de humildade, junto com a busca da reconciliação, é uma das marca mais fortes nas linhas escritas por Tereza. Melhor dar novamente a palavra a ela: “E parecia-me que era melhor andar como muitos – pois em ser ruim eu era das piores – e rezar só o que era obrigada, e vocalmente, do que ter a oração mental e gozar da intimidade com Deus” (cap. 7, nº 1).
Aflita por ter-se afastado da presença divina, ela limita sua oração ao mínimo que a regra exige e se contenta com isso. Faz a sua obrigação e nada mais! Teme a proximidade de Deus e a oração nua, sem palavras. Teme, antes de tudo, o silêncio e o encontro consigo própria, à luz do olhar divino. A transparência dessa luz a assusta. Prefere o ritualismo oco e vazio das palavras repetitivas, da devoção obrigatória, da prece mecânica. Suas palavras revelam com a maior eloqüência a dificuldade da oração mental, contemplativa. Da concentração sobre o oceano do amor divino ou sobre a menor gota de sua compaixão.
É bem humano seu temor. Ele revela nossa própria nudez. Quantas vezes, achando-nos manchados pelo pecado, fugimos da intimidade do Pai! Passamos ao piloto automático da oração comunitária, litúrgica, solene, ritualista. Nada contra esse tipo de oração, é claro. O problema é que nos contentamos com isso. Escondemo-nos de Deus no meio do grupo ou da multidão. Anulamo-nos para que o olhar divino não nos alcance. Como no episódio de Adão e Eva, nos sentimos nus, expostos ao olhar perscrutador do Pai. Na cegueira do pecado, nem sequer nos damos conta que o olhar de quem ama reveste e protege a nudez. Penetra não para expor, e sim para curar. Como o bisturi do médico, rasca o tumor para extirpá-lo.
Tereza procura a todo custo, e desde cedo, retomar o piloto manual para converter o curso de sua vida. Ela se dá conta de que o rumo de seus passos encontra-se desvirtuado. Chega a ser angustiante os esforços que faz para reorientar o próprio caminhar. A certeza de ter-se afastado da Casa de Deus a põe constantemente em alerta. E em marcha, com todas as energias, para reencontrar a si mesma e ao Senhor. Cada fuga, quando devidamente descoberta e analisada, se converte em uma nova busca. Esforça-se ao máximo para manter vivo o ardor pela presença divina em sua vida.
Como Tereza, tememos aproximar-nos de Deus com as mãos vazias. Ou pior, com as mãos sujas. Daí os subterfúgios: é quando a oração comunitária ou litúrgica, em lugar de nos levar ao contato com o Pai, nos distrai e nos afasta de sua intimidade. Usamos o tempo da oração de forma hipócrita, como escudo para escapar à luz divina. Neste caso, a oração depõe contra a verdadeira atitude orante e contemplativa. Ao invés de ponte para a divina transcendência a oração pode converter-se em interruptor que desliga o contato mais íntimo. Esquecendo da misericórdia do Pai, fazemos do pecado um motivo para mantê-lo à distância.
Instala-se, com isso, um círculo vicioso. O pecado nos afasta da Casa de Deus e a consciência do pecado, por sua vez, nos impede de reaproximar-nos. Não confiamos na sua infinita capacidade de perdoar. Medimos a misericórdia divina com o metro da compaixão humana. E assim, alongamos cada vez mais a distância que nos separa desse oxigênio do amor. Sufocados, deixamo-nos afogar em fórmulas repetitivas e mágicas, em lugar de um encontro profundo com o Pai. Ou seja, mantemos a aparência externa de pessoas de oração, envernizamos a própria imagem diante dos outros, enquanto, no mais íntimo, destilamos o medo de fixar nossos olhos no olhar de Deus. Medo que facilmente se torna veneno e nos asfixia. “Na verdade, me pesava muito que tivesses boa opinião sobre mim, já que eu conhecia o meu segredo” (cap. 7, nº 1), conclui Tereza. Numa palavra, depois que aprendemos a nutrir-nos com o oxigênio da Casa de Deus, torna-se difícil, senão impossível, viver sem ele.
O humano e o divino
O Livro da Vida repete com insistência a distância entre, de um lado, a misericórdia de Deus e, de outro, a mesquinhez humana. Página a página, Tereza vai desnudando suas dúvidas, incertezas e contradições. Frente à luz divina, sua alma reconhece a própria pequenez. Sua descrição enfatiza o abismo que separa a esfera do divino e a esfera do humano. “Levava uma vida penosíssima, porque na oração compreendia mais minhas faltas: de um lado, Deus me chamava, de outro, eu seguia o mundo. Parece que queria juntar esses dois contrários – tão inimigos um do outro – como são a vida espiritual e as alegrias e prazeres e passatempos dos sentidos” (cap. 7, nº 17). Por diversas vezes ela contrasta suas faltas e “ruindades” com as infinitas dádivas que recebe de Sua Majestade, particularmente nesse conflito entre os atrativos do mundo e a serenidade da Casa de Deus. Por exemplo, “nos 28 anos desde que comecei a oração, mais de dezoito passei nessa batalha e contenda de viver com Deus e com o mundo” (cap. 8, nº 3). Como se o Criador fosse a música e nós as cordas de um violão, como se Ele fosse o sol e nós um simples planeta – diria Carlo Molari.
A criatura é um reflexo da bondade do Criador, como a lua reflete o brilho do astro rei. Se a criatura permanece aberta à esse brilho, pode passá-lo à frente, reproduzi-lo, iluminar o caminho dos outros. Caso contrário, torna-se opaca e reflete a si mesma. O mesmo se pode dizer do instrumento musical. Sem a música, não passa de uma coisa morta. O Criador é a fonte da sinfonia universal e de sua luz. Nós, quando muito, podemos espelhar seus raios ou sua melodia. E é assim que podemos iluminar de novo brilho tanto a relação diária com os irmãos quanto o compromisso de transformação sociopolítica.
Não é difícil dar-se conta da distância que separa Criador e criaturas. Basta sondar o interior de nós mesmos. “Coração de gente é terra selvagem”, diz Guimarães Rosa (Grande Sertão – Veredas). Selvagem, obscura e desconhecida. Ali, surpreendentemente, coabitam joio e trigo, amor e ódio, guerra e anseio de paz. A fronteira entre o bem e o mal passa por dentro da alma humana. Somente a luz que vem da intimidade com Deus pode desenvolver um em detrimento do outro. A graça de Deus, e só ela, agindo durante toda uma existência, é capaz de superar a tendência humana ao egoísmo, fazendo-nos evoluir para a comunhão e a partilha.
Talvez o maior exemplo disso seja o apóstolo Paulo. Tem consciência do “espinho na carne”, mas sabe que “Deus escolhe os fracos para confundir os fortes”. Mais ainda, confessa sem falsa humildade que “quando sou fraco é então que sou forte”. Carrega o tesouro da graça divina “em vasos de barro”. Em também sem falsa humilde, nem orgulho, é capaz de reconhecer ao fim da vida: “combati o bom combate, terminei minha corrida, conservei a fé; agora só me resta esperar a coroa da justiça” (2Tm 4,6-8). Reconhece a contradição entre o coração que ama e a vontade que não se deixa disciplinar: “Não consigo entender nem mesmo o que faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais detesto” (Rm 7,15). Esse sentimento da própria fraqueza e de de que “é Cristo que age em mim” constitui uma das grandes tonalidades nos escritos de Tereza. Tendo plena consciência de sua fragilidade humana – “é verdade que sou mais ruim do que todos os nascidos” (pág. 84) – atribui à vontade de Deus tudo o que lhe acontece de bom.
Mais ainda, é capaz de ver na enfermidade e no sofrimento os desígnios de Deus em relação ao seu destino. Como no Livro de Jó: “Nu eu saí do ventre de minha mãe, e nu para ele voltarei. O Senhor me deu tudo e o Senhor tudo me tirou. Bendito seja o nome do Senhor” (Jo 1,21). Ou seja, se aceitamos as coisas boas, também devemos aceitar as más. Dor e esperança, cruz e ressurreição se mesclam em suas páginas. Como o próprio Cristo no alto do madeiro, Tereza, paralisada de dor sobre a cama, entrega-se a Deus pela salvação dos pecadores. Se “o verbo se faz carne” e se humaniza para que nos apontar o caminho do Pai, Tereza, vive todas as potencialidades do humano, ultrapassa-o e toca o divino.
Mais textos do Padre Alfredo em www.provinciasaopaulo.com
Teresa Norma
jun 14, 2011 @ 08:54:07
Que reflexao maravilhosa!. Vou imprimir pra ler mais vezes