Do Chifre da África às antigas utopias
Washington Novaes
É inevitável que venha à mente, nestes dias em que se lê o noticiário terrível sobre a seca no “Chifre da África” e sobre os conflitos que cercam o nascimento da 54.ª nação africana – o Sudão do Sul, separado do norte -, o livro O Coração das Trevas, em que Joseph Conrad retratou com exatidão os dramas inacreditáveis que cercavam e cercam etnias africanas postas em confronto na disputa por recursos naturais, fruto das divisões artificiais de terras impostas pelos interesses dos países colonizadores. “O horror! O horror!”, diz o personagem de Conrad.
“O horror! O horror!”, repete-se agora, ao ler que 2 milhões de pessoas morreram nos conflitos entre o norte islâmico do Sudão e o sul cristão e animista; ao saber que 80% da população do sul, pelo menos, é constituída de analfabetos; que 90% dos 9 milhões de habitantes vivem com menos de meio dólar por dia – embora o país seja rico em petróleo (uma das causas da guerra) e ainda terá de acertar com a antiga matriz como continuar a exportá-lo por um duto controlado ao norte. Sem falar na fome das nações vizinhas – Djibuti, Etiópia, Quênia, Somália, Uganda -, atormentadas pela pior seca em 60 anos, com mais de 500 mil pessoas já em campos de refugiados, 10 milhões passando fome.
Tudo se repete, como na guerra entre Congo, Ruanda e Burundi, que deixou alguns milhões de mortos em disputa de água e terras. Pode repetir-se no Sudão do Sul, com suas 200 etnias enfrentando a seca mais grave em mais de meio século. Com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) bradando que precisa aplicar na região US$ 1,6 bilhão até o fim do ano para impedir que morram 800 mil crianças – mas enfrentando a resistência de militantes islâmicos, que tentam impedir a entrega de ajuda humanitária. Até mesmo na capital, onde a fuga aos conflitos armados fez a população crescer de 200 mil habitantes em 2006 para 1 milhão. E ainda será preciso fazer sentar à mesma mesa sul e norte para discutir pendências financeiras, demarcação de áreas de fronteira, gestão do petróleo.
Que se fará para mudar todo um continente, eliminar conflitos por recursos naturais entre milhares de etnias juntadas ou separadas por interesses dos antigos colonizadores? Que fazer para superar os conflitos de base religiosa, o racismo mesmo? Como reinventar o mundo para que a divisão de recursos entre continentes, países, grupos seja mais equânime? Como evitar que 80% dos recursos planetários sejam consumidos nos países industrializados, com menos de 20% da população mundial? Pior ainda, como evitar que 1 bilhão de pessoas passem fome todos os dias, enquanto, segundo a FAO, um terço dos alimentos no mundo se perde ou é desperdiçado – 1,3 bilhão de toneladas por ano (670 milhões nos países ricos, 630 milhões nos demais)? E ainda sabendo que a produção mundial de alimentos terá de aumentar em 70% até 2050, para atender a mais de 9 bilhões de pessoas.
Como reinventar o mundo, superar o racismo? O escritor Henry Miller (Trópico de Câncer, entre outros livros), que pregava a necessidade de caminhar nessas direções, dizia que a nova civilização que teremos de fundar não será apenas mais uma – será a síntese de vários formatos experimentados pelo ser humano ao longo de sua trajetória pela Terra. Talvez a máquina desapareça, pensava ele – mas não antes que tenhamos descoberto a natureza do mistério que nos liga à nossa criação. As instituições, tal como as conhecemos hoje, deixarão de existir. E os povos fluirão livremente pela face da Terra, em grupos mais ou menos permanentes. Instigante.
E o racismo? O professor Kabengele Munanga, da USP, exilado do Zaire (atualmente denominado República Democrática do Congo), já dizia há mais de 20 anos, num seminário na Bahia, que a base do racismo não está na negação da diferença (entre etnias, cor da pele, etc.): está “no temor da semelhança”; porque “é pelo fato de saber que eu posso fazer as mesmas coisas que ele, posso ocupar o lugar dele, que o racista me discrimina, persegue e mata”. É por caminhos como esse que se esquece que os direitos humanos são de todos, acrescentava o escritor Joel Rufino dos Santos.
Todas essas coisas têm de estar muito presentes no momento em que o mundo se vê, mais uma vez, à beira de uma crise sem precedentes, em que o centro da questão parece estar no descolamento entre a realidade concreta e os valores monetários em circulação – estes, em torno dos US$ 600 trilhões, quando toda a produção do mundo está na casa dos US$ 62 trilhões anuais. Como dar garantia real a cada aplicação financeira? Como disciplinar o giro vertiginoso dos papéis, em busca de solidez (como já foi comentado aqui, um contrato de soja brasileira no mercado futuro mundial pode mudar de mão até 40 vezes antes de se concretizar; nossa safra que será plantada daqui a um mês e meio já está em boa parte negociada)? E se os Estados Unidos não tiverem como garantir a sua dívida trilionária? Por onde caminharemos?
É preciso repensar tudo. E relembrar uma passagem do escritor Rubem Braga. Para ele, a lição básica é não nos refugiarmos em abstrações. Só existem – escreveu ele – pessoas e coisas e relações entre elas. Se formos capazes de não nos escudarmos, não nos defendermos de pessoas e coisas, se nos deixarmos atingir por elas, se tomarmos tudo pessoalmente, jamais nos desviaremos dos “caminhos do coração”. E eles é que devem contar. Difícil, nestes tempos em que, mais e mais, as pessoas se refugiam atrás de computadores. Mas não há alternativas eficientes para as palavras do grande mestre da crônica.
E retornando ao começo destas linhas, vale a pena lembrar também Jean-Paul Sartre, que descobriu num campo de concentração que a solidariedade não é apenas um dever moral – é um fato; estamos ligados a tudo e a todos (inclusive ao carcereiro), queiramos ou não, gostemos ou não. A África é aqui mesmo, nosso futuro dependerá do que acontecer lá.