O ser humano, esse desconhecido
Domingos Zamagna
Apesar de ser professor há três décadas, levei um susto ao ouvir, pela primeira vez, uma universitária dizer que não admirava ninguém, ninguém mesmo. Tentei sondá-la melhor, através de perguntas, para saber se a tinha entendido corretamente. As respostas me confirmaram, ela dissera exatamente o que eu ouvira.
Geralmente os universitários brasileiros têm uma veneração obrigatória, quase religiosa, por Marx, Nietzsche, Gramsci, Foucault, Deleuze… Mas não era o caso dela, curiosa exceção. Para ela, Jesus não ia além de um fantasma. Nem os pais, professores, amigos mereciam a sua consideração!
Pensei em citar alguns heróis da pátria, alguns políticos considerados benfeitores da nação. Em boa hora calei a boca, envergonhado e arrependido por ter votado em alguns deles. Já que a escola era católica, apeguei-me às virtudes dos santos. Tentei me valer de um exemplo mais próximo para nós em São Paulo, citando o Pe. Anchieta e o Fr. Galvão. Mas, ela tinha informações truncadas sobre eles; aproximava-os da magia e do obscurantismo. Vali-me de uma mulher extraordinária, Irmã Dulce; recorri à idade média, São Francisco de Assis… Voltei para a contemporaneidade, ela praticamente ignorava D. Helder Camara, Zilda Arns, D. Luciano Mendes, Médicos sem Fronteiras, Amoroso Lima, Irmã Dorothy… Pensei que o Judaísmo, Budismo, Protestantismo, Islamismo, Espiritismo, Umbanda fossem alternativas; lembrei Einstein, Ghandi, Avicena, Luther King, Chico Xavier, Mãe Menininha… Ela me olhava como se eu falasse de incríveis tempos diluvianos. Nada. Que impasse!
Aliás, é cada vez mais comum encontrar gente muitíssimo jovem, porém, com escassa informação, e já dotada de opiniões formadas sobre pena de morte, aborto, partido político etc., ideias peremptórias, irredutíveis, sem deixar qualquer espaço para o diálogo.
Ninguém nasceu sabendo. Se os educadores não apresentarem pensadores que tragam uma visão humanista do mundo, será muito difícil que sejam descobertos sozinhos. Há pensadores que foram praticamente proscritos das nossas matrizes curriculares: atualmente, quem lê Pascal, Mounier, Chesterton, Newman, Amoroso Lima, Octávio de Farias, La Pira, Tillich, Lonergan, Kierkegaard, Plantinga, V. Havel, M. Scheller, para citar uns poucos…? Uma vez propus seminários, um sobre Alain, outro sobre Lavelle, tão instigantes, e fui objeto de zombaria.
Retomando o fato da jovem, ignoro os motivos que levaram uma aluna a tão inusitada quanto arraigada convicção. Mas preocupa-me que alguém chegue, e tão cedo, a semelhante aridez, a tamanha secura, à total carência de estímulos intelectuais e morais. Como é possível alguém ficar insensível diante de Dante, Shakespeare, Machado de Assis, Guimarães Rosa?
O ser humano é estruturalmente voltado para o conhecimento da verdade e a prática do bem. Deveria ser fascinado por esses dons, seduzido pelas expressões terrenas dessas faculdades. E, efetivamente, são infindáveis os exemplos de verdade e bondade na face da Terra. Exemplos que ultrapassam a simples razoabilidade e atingem até mesmo o supremo grau do heroísmo. Exemplos que se materializam constantemente ao nosso redor; às vezes nós os encontramos dentro de nossa própria família, nos cuidados de um pai, de uma mãe.
Que terrível foco de decepções –obviamente provindo de adultos– poderá ter reduzido a zero a capacidade de um ser humano deixar-se seduzir pela verdade, bondade, amor, beleza e paz?
Ocorreu-me um exemplo vindo do Cristianismo nascente. O apóstolo Paulo anunciou aos atenienses (cf At 17) quem era o “agnóstos theós” (o deus desconhecido) que todos buscavam e que agora, na sua concepção, era possível encontrar: Jesus Cristo morto e ressuscitado. Nem é preciso ter fé para perceber o alcance antropológico e ético daí decorrente.
Numa época de crepúsculo de valores, seria prova de sabedoria anunciar, sobretudo aos jovens, que os autênticos valores –não suas caricaturas– não passam, não se submetem aos modismos; eles não só existem como são praticados por homens e mulheres longe e próximos de nós. Creio ser dever de cada um de nós a tarefa de descobrir e venerar o “ánthropos agnóstos” (o ser humano desconhecido), esse que –no metrô, na escola, no escritório, na feira…– está ao lado de nós.