Finados: a celebração da vida
José Lisboa Moreira de Oliveira
Faz parte da nossa cultura a celebração de Finados no dia 2 de novembro. Todos os anos, nesta data, as pessoas vão aos cemitérios para venerar os seus mortos. A reverência pelos mortos é praticamente tão antiga quanto a humanidade. Pesquisas arqueológicas comprovam que há pelo menos 150 mil anos nossos ancestrais já enterravam seus mortos, numa demonstração de que consideravam o corpo humano como sagrado e, por isso, não o deixavam apodrecer ao relento ou que fosse consumido por animais e aves de rapina. E não só isso. As pesquisas comprovam também que no período antes mencionado, correspondente ao Paleolítico médio, quando da passagem do homo pré-sapiens para o homo sapiens, os nossos ancestrais enterravam os seus mortos acompanhados de objetos que, depois de analisados, revelaram tratar-se de algo ligado à crença na existência do sobrenatural e de uma vida após a morte.
Portanto, a celebração ou “culto” aos mortos se desenvolveu muito cedo nas culturas antigas. Inúmeros são os dados que comprovam a existência entre os povos mais antigos de verdadeiros “mementos” aos falecidos. Quando o cristianismo chegou às várias regiões do mundo greco-romano encontrou essas práticas e, aos poucos, as substituiu pela oração em favor dos mortos. Já no século II da nossa era a lembrança dos falecidos foi introduzida no ritual da celebração da missa, dinamizada pela fé na ressurreição.
Os povos mais antigos encaravam a morte com muita naturalidade. A consciência da finitude estava presente e, por isso, a morte não causava tanto pavor. Era notável entre esses povos a celebração festiva da morte. Acostumados com o ritmo da natureza, os antigos percebiam que era próprio da vida o nascer, crescer, decrescer e morrer. E como entre vida humana e natureza não havia separação, os antigos entendiam que o homem e a mulher estavam submetidos também a esse ritmo. Por essa razão não achavam estranha a morte dos humanos e a acolhiam com bastante naturalidade. Esta cultura ainda está presente em alguns lugares do mundo. Há alguns anos atrás fui ao México para um congresso e a data do evento coincidiu com o período do dia de Finados. Confesso que fiquei impactado com a naturalidade com a qual os mexicanos celebram os mortos. Ao entrar num restaurante para o almoço deparei-me com um caixão de defunto na entrada e dentro dele um boneco que simbolizava o morto. No dia de Finados eles distribuem chocolates em forma de crânios humanos e à noite a cidade do México fica enfeitada com caveiras e crânios luminosos. Ao indagar a origem daquele costume fiquei sabendo que remonta aos astecas, os quais celebravam a morte com a mesma intensidade com que celebravam os outros ciclos da vida.
O medo e o pavor da morte são heranças da cultura ocidental, cujos integrantes arrogaram-se no direito de tomar o lugar dos deuses. Sentindo-se autossuficientes e donos do mundo promoveram a discórdia, a injustiça, a matança e a miséria. Com isso chamaram a morte para si e a colocaram na ordem do dia. Após terem feito isso se sentem apavorados e com medo de morrer. Por essa razão, fogem da morte a todo instante, mas quanto mais dela fogem, mais se sentem envolvidos por ela. Fazem muros em volta das casas, criam condomínios fechados, cercas elétricas, carros blindados, mas a morte os persegue de todo jeito, uma vez que tais sujeitos são amantes da “cultura de morte” e desprezam a vida.
Esse medo da morte é também resultante de uma cultura dualista e maniqueísta, que separou radicalmente o corpo da alma, a espiritualidade da vida cotidiana, o espírito da matéria. E não só separou, mas valorizou de modo exacerbado a razão em detrimento da emoção, colocando a “alma” acima do corpo e a “outra vida” além da vida neste mundo. Com isso ofereceu um passe livre para que se pudessem cometer todos os tipos de atrocidades como, por exemplo, a matança dos indígenas e a trituração dos negros não só no período escravagista, mas até os nossos dias. E quando viram que isso não funcionava voltaram-se para o culto ao corpo, para a idolatria da beleza artificial. Mas para sustentar tal culto e tal idolatria não hesitaram em negar à grande maioria das pessoas os direitos mais elementares como a comida, a moradia, a educação e a saúde.
Diante disso, o dia de Finados apresenta-se como uma oportunidade para celebrarmos a vida. Precisamos, antes de tudo, voltar às origens para, como nossos ancestrais, acolher a morte como parte de um processo natural que envolve também os seres humanos. Além disso, diante da memória de nossos entes queridos que se foram; renovar o compromisso de lutar pela vida e de amá-la intensamente. Não podemos continuar com gestos hipócritas e fingidos que nos levam ao cemitério apenas para que os amigos e conhecidos vejam que uma vez por ano limpamos o túmulo dos nossos parentes e neles colocamos algumas flores que logo murcham.
Somos convidados neste dia a encarar a vida com naturalidade, aceitando o seu ritmo que inclui também a morte. Não podemos continuar fingindo e fazendo de conta que a morte não existe. Isso porque tal fingimento nos faz arrogantes, prepotentes, ambiciosos, falsos deuses. Urge descermos do pedestal, aceitar o ritmo da vida e homenagearmos nossos mortos com um compromisso mais sério em favor da vida. Mais do que “lágrimas de crocodilo” precisamos, diante de nossos mortos, assumirmos posturas de vida. Num mundo ameaçado pela violência, pelo ódio, pelo desprezo da vida e atitudes de agressão ao planeta em que habitamos, cabe mudar de postura e fazer do dia de Finados um momento para celebrar a vida.
Concluo com um exemplo para ilustrar o que estou dizendo. No momento em que escrevo este texto, indígenas do Distrito Federal lutam para não serem despejados de uma área onde vivem há muitos e muitos anos e onde organizaram o “Santuário dos Pajés”. A ganância das imobiliárias e da indústria da construção civil “botou os olhos” nesta área e quer a todo custo construir o bairro Noroeste de Brasília para oferecer “qualidade de vida” as uns poucos afortunados. Tudo sob o olhar conivente e a omissão dos três poderes da República.
A sociedade dos homens-deuses não aceita conviver com culturas simples e diferentes e quer eliminá-las a todo custo, para dar lugar àquilo que ela chama de civilização do progresso. Para favorecer o enriquecimento de uns poucos ela promove a destruição e a morte dos mais simples, dos indefesos e da natureza. Ao invés de aprender com os indígenas a lição de um estilo de vida aberto, sem muros, sem chaves, sem guardas, sem violência, quer eliminá-los para plantar ali a cultura dos condomínios fechados, verdadeiros ícones do medo da morte. E, depois disso, reclama da violência, da falta de segurança. Pura hipocrisia, pois ela mesma promove e incentiva a cultura de morte.