Realeza diferente
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Realeza quer dizer magnificência, autoridade e poder. Ou seja, tudo aquilo que é relativo ao rei e diz respeito à sua pessoa e ao âmbito que abrange seu título nobiliárquico, o maior de todos existentes no território em que governa. Realeza é senhorio, é dignidade, é majestade tamanha que no antigo Brasil colônia, por exemplo, aonde o rei não podia ir pessoalmente, seu retrato o representava. E diante daquela efígie, todos se inclinavam, reverentes, reconhecendo sua realeza.
Em outras circunstâncias, não havendo o retrato, era a veste do rei que o representava e era objeto de preito e deferência. Tudo que lembrasse o rei e o que sua pessoa simbolizava: o cetro, a coroa, o manto, o trono, podia remeter a seu poder e autoridade e invocar respeito e submissão dos súditos.
Desde muito tempo, a humanidade encontrou no rei, no monarca – princípio único que a tudo ordenava – a personificação da ordem e da harmonia que sonhava viver e experimentar. Indivíduos e comunidade esperavam do rei o direcionamento, a lei a cumprir, a justiça enquanto parâmetro a nortear o comportamento e a organização da vida. Não foi diferente com o povo da Bíblia.
Uma vez que se encontrou maduro em seu processo identitário como povo da Aliança, o desejo de ter um rei começou a pulsar no coração do povo. Em clara consciência e consonância com a experiência de libertação dada por Deus e o dom da terra para habitar e viver, o povo necessitava um líder instituído e sagrado. Alguém que liderasse com justiça e equidade e que fosse o intendente do próprio Deus.
Não foi uma tarefa fácil a escolha do rei. Pois se este devia na terra tornar visível o próprio Deus, teria que ser, como o Santo de Israel, o porta-voz e defensor do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Mais do que qualquer outro membro do povo, deveria o rei estar junto aos mais pobres e oprimidos, fazendo-lhes justiça e por eles falando, a eles defendendo.
Logo os reis se revelaram humanos e tristemente pecadores. Agiam com a ambiguidade inerente à condição humana, feitos de pó e barro como nós. Arrebatados por paixões, deixaram-se dominar pela ambição, pela luxúria, pela crueldade. E o ideal da realeza, golpeado e enfraquecido, passou a ser dilatado para os tempos messiânicos, coração da esperança do povo.
Quando viesse o Messias, este seria um rei segundo o coração de Deus. Filho do Altíssimo, ele faria reinar a justiça e o direito, e seu comportamento resgataria todas as ovelhas perdidas da casa de Israel. Os tempos de sua vinda seriam de festa e alegria, pois Deus teria então feito uma visita definitiva ao povo, que conheceria enfim a plenitude da vida.
A primeira comunidade cristã reconheceu em Jesus de Nazaré encarnado, vivo, morto e ressuscitado esse messias esperado. Proclamou-o a tempo e contratempo Senhor e Cristo. E anunciou aos quatro ventos que por ele e nele Deus havia cumprido todas as suas promessas. Ele era o Messias esperado e encarnaria então a verdadeira realeza que só pertencia a Deus.
No entanto, a realeza encarnada, vivida e anunciada por Jesus, que seria reconhecido por seus seguidores como Messias, parecia bem diferente daquilo que normalmente se espera de um soberano ou de um rei. Sua autoridade vinha do amor e da humildade; seu poder se expressava no serviço mais simples ao menor de todos os seus semelhantes, a quem chamava não de súditos, mas de irmãos; seu trono era a poeira dos caminhos; seu cetro, suas mãos calosas de carpinteiro, despidas de adereços, que abençoavam e curavam quantos encontravam; sua coroa era sua cabeça ungida pela água do Jordão e pelo perfume de Maria de Betânia; e, finalmente, o círculo de espinhos que lhe apertou cruelmente o crânio até que exalasse o último suspiro.
Com sua Ressurreição, seus discípulos perceberam que ali estava verdadeiramente o Rei esperado. Jesus com sua vida, suas palavras, sua prática, resgatava o Deus que sempre na história do povo se identificava com os mais pobres e desvalidos, até o ponto de padecer a mesma sorte e o mesmo destino de todos eles. Celebrar a festa de Cristo Rei, que fecha com chave de ouro o ano litúrgico e abre as portas para o Advento do Natal é pisar nas pegadas desse Rei, que só se encontra no despojamento e no serviço. Hoje como ontem ele liberta o povo de todas as opressões pelo mistério de seu poder feito impotência pelo amor apaixonado pela humanidade.