O conceito de bem viver
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O universo tem seu ritmo, no qual se inscreve o movimento dos astros em geral e do planeta terra em particular; a natureza tem seu ritmo, onde o tempo se mede em estações, a fauna e flora se criam e recriam; o corpo humano tem seu ritmo, que é simultaneamente físico, emocional, psíquico e espiritual; até mesmo a cultura dos povos e nações adquire um ritmo próprio, que se diferencia de acordo com o clima, os inventos, o patrimônio material e imaterial, além de muitas outras circunstâncias. Equilíbrio e harmonia são as marcas registradas desse ritmo natural.
Nos tempos modernos (ou pós-modernos), a existência humana sobre a terra se acelerou de tal modo que contrasta frontalmente com o ritmo do universo e da natureza. Uma série de transformações que culminam na Revolução Industrial, acompanhada de outras revoluções como a dos transportes, a das telecomunicações e a da informática, a da medicina, imprimiu à história um ritmo alucinado e sem precedentes. Modificou-se para sempre a concepção de espaço e de tempo, como se uma segunda natureza viesse sobrepor-se à ordem natural. Também o corpo adquire uma segunda natureza, forçada pela transformação do camponês em “soldado do trabalho”, além da tirania da moda, do padrão de beleza e da proliferação de academias.
O sol e a lua, o plantio e a colheita, a primavera e o inverso, o dia e a noite… Não mais ditam o ritmo da vida. Tampouco a geografia se mede pelo caminhar ritmado do homem ou do animal. O relógio, o horário do trem, o transporta aéreo, a TV e a Internet, a simultaneidade da notícia, praticamente aboliram as distâncias e as balizas do tempo. A eletricidade, por sua vez, aboliu a noite. O ser humano não mais é despertado pelo canto do galo ou pela luz da aurora, mas pelo despertador ou telefone celular. Conectados, navegamos “on line”, sem necessidade das estrelas para nos guiar, onipresentes nos quatro cantos do mundo. Este, por fim, se transformou literalmente numa aldeia.
Nesse ritmo vertiginoso, perdemos a capacidade de nos espantar ou de nos extasiarmos. Os pais raramente se surpreendem com a primeira palavra, os primeiros passos ou a primeira queda da criança, pois a pressa de seus compromissos os atropelam. Os turistas pouco se entusiasmam com a beleza da cachoeira, da montanha ou da paisagem, pois já dispõem das imagens de tudo isso via Internet. Pode até ocorrer o contrário: desilusão entre a imagem virtual e a real. Também os transeuntes não se apercebem do canto dos pássaros ou da festa dos escolares no recreio, pois tudo isso é encoberto pelo ruído dos carros e aviões. Uma visita, esperada ou inesperada, é incapaz de nos despertar curiosidade, uma vez que a televisão é a rainha única das novidades. A técnica deslocou o “novo” dos encontros, sentimentos e emoções, para concentrá-lo nos modismos das mercadorias.
Substituímos o bem viver pelo viver bem. O conceito de viver bem está relacionado à vontade de adquirir coisas, objetos, bens de todo tipo, acompanhar as últimas inovações da moda. Tem a ver com a capacidade de ter, possuir, consumir, aparentar… Viver bem é sinônimo de apossar-se de conhecimento, riqueza, acúmulo, conforto, com a finalidade consciente ou inconsciente de dominar o outro, o tempo e a natureza. Pouco importa que esta seja agredida e degradada, devastada e poluída. O importante é buscar o máximo de prazer para mim e para os nossos, ficando excluídos os outros. Estabelece-se uma fronteira rígida e intransponível entre os de dentro e os de fora. Individualismo, corporativismo e hedonismo se mesclam como irmãos siameses de outros “ismos”. O resultado está no desequilíbrio entre a ânsia humana de possessão e os recursos na natureza.
O conceito de bem viver, ao contrário, leva em conta a relação com a mãe terra e seu ritmo natural. Trata de proteger, cultivar e cuidar de um ambiente onde a vida tem suas leis e sua cadência próprias. Mais do que violentar essa cadência para o bem estar individual, prevalece a preocupação de conviver pacificamente com outras formas de vida. No horizonte mais amplo encontram duas visões indissociáveis: por um lado, a noção de biodiversidade, isto é, o respeito pela vida em todas as suas manifestações; por outro, o termo hoje bem disseminado de sustentabilidade, seja em termos socioeconômicos e políticos, seja em termos culturais e ecológicos. Numa palavra, coexistência pacífica com o ritmo da natureza, acompanhada de justiça e solidariedade frente à população pobre e excluída.
Retorno à cultura dos ancestrais, aos povos primordiais, aos indígenas? Sim e não! Mais do que retorno, devemos falar em revisita. Revisitar sua forma de conviver com o ritmo da natureza, sem cair num saudosismo mórbido e doentio. Recriar seu espírito e sua sabedoria nos desafios do mundo contemporâneo, simbolizados em expressões como Sumak kawsay, de origem quéchua, que revela um paradigma civilizatório de equilíbrio com o ciclo da Pachamama, nossa Mãe Terra. Não se trata, portanto, de imitá-los. Imitar pode ser a pior forma de seguimento: é a via mais fácil e curta. Em vez disso, o que está em jogo é a via longa de resgatar o cuidado e a proteção da biodiversidade, em função de uma civilização justa, solidária e sustentável. O grande desafio é voltar ao berço e às fontes, onde o leite é mais sadio e a água mais cristalina, mas com a perspectiva de avançar para a fronteira. Recuo estratégico para qualificar e fortalecer um passo à frente. Fidelidade a uma sabedoria que ensina a preservar a vida em todas as suas expressções.
Neste ponto, não podemos confundir civilização alternativa com formais artesanais de vida. As alternativas à sociedade neoliberal, ao mercado e ao consumo exacerbado podem contar com as inovações tecnológicas de ponta. Isso exige repensar o uso da tecnologia, de tal forma que esta esteja a serviço da qualidade da vida humana e de todas as formas de vida. Buscar alternativas não é voltar atrás. Antes, é dar uma olhada no retrovisor do tempo, para poder acelerar em outra direção. A partir de uma encruzilhada, a história ganha novas bifurcações. Bifurcação rima com a necessidade de escolha e de opção. Ou destruímos a natureza e nos afundamos com ela, ou nos salvamos através de uma nova forma de relações em que a Vida, com letra maiúscula e no plural, está em primeiro lugar.
A história não se detém. Mas o ritmo de crescimento pode ser revisto. Atualmente ele está subordinado ao lucro e à acumulação de capital. Tudo devora, tudo devasta, tudo contamina para garantir maior riqueza. Daí a panacéia do crescimento como remédio para todos os males, o que se contrapõe à defesa e proteção do meio ambiente. O conceito de bem viver, diferentemente do viver bem, procura ajustar o ritmo da civilização humana ao ritmo do universo e da natureza. O acento recai não sobre o progresso e o crescimento, e sim sobre a partilha e a equidade. A ciência e a tecnologia trabalham para que os benefícios dos inventos e do trabalho cheguem a todos os povos, nações e pessoas.
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