Profecia: a partir dos pobres
Gilvander Luís Moreira
Palavra de Javé: consolai os aflitos e afligi os consolados! Ninguém pode tocar o corpo dos escritos proféticos sem sentir a batida do coração divino.
A Bíblia, se interpretada com sensatez e a partir dos pobres, nos educa para a vivência profética, o que passa necessariamente por construir uma convivência humana e ecológica onde o bem comum seja um princípio básico seguido.
Os grandes desafios da realidade social, eclesial e eclesiástica para as pessoas cristãs que se engajam nas lutas sociais e na construção de uma sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável, – também construção de uma igreja Povo de Deus -, me fazem recordar também os desafios de muitos profetas e profetisas da Bíblia e de suas profecias.
Quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou os movimentos populares que fazem ocupações urbanas realizam ações radicais – não extremistas, mas aquelas que, de fato, vão à raiz dos problemas e, por isso, ferem o coração da idolatria do capital – o ódio dos poderosos despeja-se sobre os militantes dos movimentos populares. Isso faz acordar em mim profecias bíblicas, como das parteiras do Egito, dos profetas Elias, Amós, Miquéias e do galileu de Nazaré.
Quantos de nós já nos dispusemos a fazer a experiência de viver sob lonas pretas e gravetos – em condições similares aos animais no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem de nós já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeitos aos ataques noturnos repentinos? Quantos já permaneceram em um acampamento do MST por mais de um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida? Quantos já viram o desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços?
Sentindo-me na pele dos sem-terra e dos sem-casa, convido você para visitar algumas profecias bíblicas das parteiras, de Elias, Amós, Miquéias e Jesus de Nazaré, na esperança de que possam iluminar nossas consciências e aquecer nossos corações para discernirmos o que é preciso fazer, como fazer e comprometermo-nos de fato com a causa dos pobres que, com fé libertadora, lutam por direitos humanos, por uma terra sem males.
Uma premissa básica: nosso Deus é transdescendente. Muitos perguntam: se Deus existe e é todo poderoso, por que permite tanta dor, tanta violência e sofrimento no mundo? Deus é sádico? Está sentado na arquibancada, de braços cruzados, vendo o sangue do inocente verter na arena da vida? Deus não faz nada? Um sábio, ao ouvir essas interpelações, respondeu: Deus fez e faz todos nós para sermos no mundo expressão do Deus que é infinito amor. A única força que Deus tem é o amor, que aparenta ser a realidade mais frágil, mas é a mais poderosa do mundo. Só o amor constrói.
Jesus se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai (abbáh, em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus comprometido com os pobres é um Deus transdescendente, não apenas transcendente – sua transcendência se esconde na imanência, o divino no humano. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los (Êxodo 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito está nas águas, permeia e perpassa tudo (Gênesis 1,2). Em Jesus de Nazaré, tendo “nascido de mulher” (Gálatas 4,4), Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana. No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definitivamente (Apocalipse 21,1-3). Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Esta característica se reflete em Jesus e continua nas pessoas cristãs de verdade.
Profecia é sussurro de Deus. Os oráculos proféticos, normalmente, são introduzidos com uma fórmula característica: “Assim disse Javé….” ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23). A expressão “ne’m YAHWEH”, em hebraico, geralmente traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de Javé”, significa “sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da profetisa”. Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer silêncio, prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser amiga/o. Logo, Deus não falava claramente aos profetas, como nós, muitas vezes pensamos. Deus fala hoje para – e em – nós do mesmo modo que falava aos profetas e às profetisas. Deus cochicha (sussurra) em nossos ouvidos, sempre a partir da realidade do pólo enfraquecido, na trama complexa das relações e estruturas humanas.
Precisamos colocar nossos ouvidos e nosso coração pertinho do coração dos violentados, para que nossas palavras possam refletir algo da vontade do Deus da vida. Mais que fazer cursos de oratória, precisamos de cursos de “escutatória”. Para ouvir os clamores mais profundos dos empobrecidos é necessário conviver com eles.