Porões da metrópole: Luz, brotos e esperança
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O termo porão, neste caso, nem sempre representa algo figuradamente oculto, subterrâneo, obscuro ou noturno. Por paradoxal que pareça, pode ser uma realidade escancarada, a céu aberto, à vista de todos. Tomemos como exemplo os lixões das grandes metrópoles, onde abutres, cães e pessoas disputam pedaços de comida podre ou objetos com alguma possibilidade de uso. Porão, sem dúvida, devido à condição subumana de sobrevivência de tais seres humanos.
Outros porões expõem uma situação ao mesmo tempo nua e eloquente como as chamadas cracolândias, nos centros degradados da cidade, ou as favelas e periferias à beira dos riachos fétidos e nos extremos da mancha urbana. Também o são pela vida precária que ali luta, sonha e resiste. Em termos literais, o conceito de porão tem mais a ver com os cortiços, em seus ambientes escuros, mofados e sórdidos; as bocas de fumo, simultaneamente visíveis e clandestinas; os prostíbulos, que velam e desvelam a prática de mercantilizar carne humana; os presídios, onde a mesma carne humana se amontoa e espreme em cubículos de uma insalubridade escandalosa, comprometendo o corpo e a alma de milhares de seres humanos.
Mas há também porões diariamente freqüentados às dezenas, centenas e milhares por diferentes tipos de pessoas: os botecos, onde se mesclam e se alternam alegrias e tristezas, risos e lágrimas, sonhos e pesadelos; as feiras livres, os meios de transporte, os estádios de futebol, em que as altercações, os gritos e gestos exprimem tons diferenciados de euforia, comércio, abandono e impotência. Porões, sim, porque escondem anseios e carência, busca e desilusão. O grau e a força do grito pode ser sintoma de um vazio sem sentido e sem remédio, num mundo uma porção de “analgésicos” aliviam mas não curam a dor de viver.
Sem esquecer os porões que se opõem frontalmente à “sociedade do espetáculo” (expressão de Guy Debord). Esta se desenha em particular na mídia, nas redes sociais, nos shopping-centers, nas atividades massivas por ruas, praças e avenidas. Movida a imagens e manchetes de holofotes, câmeras e microfones, promove mobilizações de encher os olhos e os ouvidos de uma população seduzida pelas luzes e ruídos do universo urbano.
Mas tais correntes humanas sofrem de profunda ambiguidade. Expõem cenários que reúnem multidões frenéticas e eletrizadas, mas ocultam muitas vezes a fome e a miséria, o abandono e o álcool, a droga e a violência de outra multidão anônima e solitária, que habita pelos cantos esquecidos da metrópole – famílias inteiras, jovens, crianças, adultos, mulheres prostituídas, idosos alquebrados – a grande multidão dos sem nome e sem rosto, sem família e sem endereço.
Há uma rede de porões, entretanto, que clama por seu mutismo gritante, tanto mais estridente quanto mais silencioso e silenciado. Na verdade, jamais deveria ser um porão, conforme a descrição dos parágrafos anteriores, mas um ninho, um refúgio, um lugar de aconchego. Trata-se da casa, da família, do lar. Com uma frequência inusitada, os ambientes familiares se transformam subitamente de céu em inferno. Em numerosos casos, aliás, nunca viram a luz do dia! As vítimas aqui são as mulheres, as crianças e os anciãos. Feridas e cicatrizes devem ser cuidadosamente ocultas dos entes mais queridos, para não gerar golpes ainda mais graves.
É ali que a violência, em geral reprimida nos espaços públicos, abate-se com toda força no âmbito mais íntimo, atingindo não raro as pessoas que mais se ama. As manchetes jornalísticas são pródigas em atirar ao vento os escândalos desse ambiente que, muitas vezes, terminam em graves tragédias. No interior da família a pessoa encontra-se ambiguamente nua: ou para ondas incontroláveis de carinho e ternura, ou para agressões pesados e igualmente incontroláveis.
Enfim, não podemos olvidar os porões de nuestros hermanos, migrantes ou imigrantes pelas estradas, rodoviários e aeroportos, rompendo fronteiras, humilhados nos postos de fiscalização ou documentação da Polícia Federal. Indocumentados, muitos são obrigados a esconder o rosto, o idioma e o endereço. “Sem papéis”, tornam-se vulneráveis a todo tipo de exploração, além de baterem em inúmeras portas cerradas. Sem pátria num mundo que, embora globalizado do ponto de vista socioeconômico e político, lhes nega o direito de cidadania.
Todos esses porões, porém, nem sempre ocultos e subterrâneos, tampouco se revelam sombrios ao ponto que imaginamos. Na escuridão silenciosa da terra úmida, germina e nasce, cresce e se fortalece a semente. Assim, nesses lugares (ou não-lugares), onde aparentemente habita a desgraça, brotos surgem dos troncos mais inóspitos e inusitados, chama viva sob as cinzas, construções solidárias a partir dos escombros. Lugares (ou não-lugares) que, teimosa e persistentemente, respiram canto e poesia, música e dança, alegria e festa. Os moradores dos porões nunca são apenas vítimas. São antes de tudo protagonistas, sujeitos de novas redes solidárias, cujos valores, engendrados nos pontos escuros da sociedade, saem à luz do sol e, paradoxalmente, enriquecem os que habitam os andares superiores. O deserto pode ser florido; a solidão, povoada; e o porão, o lugar mais rico da casa. Tais rebentos que rompem o asfalto, a pedra e a indiferença urbana, gratuitamente ou quando organizados, abrem horizontes de esperança para uma sociedade renovada.
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