50 anos da abertura do Concílio. O processo conciliar e sua continuidade na vida da Igreja

Dom Demétrio Valentini

Introdução

Nossa vinculação com o processo conciliar

No dia 11 de outubro deste ano vamos recordar a abertura oficial do Concílio Vaticano II, ocorrida em 1962.

Passaram-se 50 anos. O momento é propício para recuperar a memória, não só de um evento individualizado, mas de um intenso processo, com o qual nos sentimos envolvidos de muitas maneiras.

Aqui em Porto Alegre o lugar é propício para recuperar a memória da dinâmica eclesial existente, quando entrou em cena o processo conciliar.

O concílio encontrou a Igreja em plena vitalidade. Em termos universais, Pio XII tinha deixado a Igreja em perfeita ordem. Como se disse do Império Romano, por ocasião do nascimento de Cristo: ‘Toto Orbe in Pace Composito”, se poderia dizer da situação deixada por Pio XII: “Tota Ecclesia in Pace Composita”!

Não havia nenhuma necessidade de concílio!

Se a Igreja estava bem no mundo, estava ótima no Rio Grande do Sul.

Como símbolos desta vitalidade, podemos destacar a figura de D Alfredo Vicente Scherer, o Cardeal Arcebispo de Porto Alegre. Ele se envolveu no Concílio desde os seus inícios, como membro da Comissão Teológica.

Ele tinha comandado com firmeza a construção do Seminário de Viamão, outro sintoma do protagonismo desta Igreja antes do Concilio.

Quero lembrar outra figura de destaque, por sua capacidade e intensa atuação, o Frei Boaventura Klopemburg, um dos poucos peritos brasileiros convidados desde o início a participar dos trabalhos de preparação do Concílio.

Recordo Dom Kloppemburg, porque participei de sua ordenação episcopal como bispo recém ordenado no dia anterior a ele, em 1982. Lembro de um episódio muito pessoal que o então Frei Boaventura me proporcionou.

No dia 11 de outubro de 1962, fui cedo à Praça São Pedro, para ver de perto a solene procissão de bispos do mundo inteiro, entrando com o Papa na Basílica de São Pedro. Graças ao Frei Boaventura pude entrar eu também, me valendo da credencial de jornalista que o Frei Boaventura me deu, lá mesmo, na Praça São Pedro!

Assim, pude participar da celebração de abertura do Concilio, me colocando mais perto do Papa do que todos os cardeais, arcebispos e bispos.

Na última Assembleia da CNBB levei um susto, ao verificar que nenhum dos bispos titulares do Brasil participou da sessão de abertura do Vaticano II, como eu tive a sorte de participar como seminarista! Foi uma graça especial, da qual nunca me esqueço, pois me coloca no compromisso de testemunhar, não só o privilégio que tive naquele dia, mas, sobretudo, o intenso envolvimento eclesial suscitado pelo Concílio.

Esta me parece ser a incumbência principal da celebração dos 50 anos do Concílio: recuperar a dinâmica eclesial suscitada pelo Concilio, e retomá-la , no contexto em que nos encontramos hoje.

A constatação de que o Concílio fez parte da dinâmica eclesial, nos desafia a retomar o protagonismo que já fez parte da Igreja do Rio Grande, de maneira destacada no contexto nacional.

Hoje também precisamos de pastores dedicados, de teólogos competentes, de liturgistas capazes, de leigos atuantes, de missionários generosos, afinal, de uma Igreja viva e atuante.

Este Simpósio em memória do Concílio, já valeria a pena pelo incentivo que nos proporciona, ao recordar o que foi nossa Igreja, e reviver as grandes perspectivas abertas pelo Concílio, com o desafio de levá-las em frente. Vivemos numa época que contou com um grande concílio. Que fizemos dele?

1) As primícias do jubileu

Passados 50 anos da abertura do Concílio, não resta dúvida que ele corre o risco de ser esquecido, ou de perder seu impulso. Numa época de tantas mudanças, não é de estranhar que um acontecimento de 50 anos atrás seja considerado passado, sem grande influência no presente.

Daí a importância de “Revisitar o Concílio”, para perceber sua vitalidade, que ainda permanece.

Neste ano, talvez em conseqüência do livro que escrevi, e que as Paulinas publicaram – “Revisitar o Concílio Vaticano II” – estou participando de muitas reflexões sobre o Concilio. Já dá para perceber algumas reações interessantes.

Em primeiro lugar, o povo simples, os leigos, a juventude, quando tomam conhecimento do que foi o Concílio, do clima de abertura, de participação, e de esperança que suscitou, logo se dão conta que o Concílio foi uma graça de Deus.

João 23 reconhecia na pronta adesão do povo um sinal da vontade de Deus. Assim agora, me parece importante respeitar o Concílio, e reconhecer que a mão de Deus esteve presente. Não dá para desprezar este Concílio, ou relativizá-lo demais.

Outra constatação incide sobre a consistência deste Concílio. Foi um concílio para valer. Assumiu um tema denso, a Igreja, na abrangência de suas diversas dimensões. Um concílio, portanto, que demanda tempo para ser implementado e assimilado.

Neste sentido, percebe-se com evidência que o Vaticano II desencadeou um processo, que ainda está em aberto. Independente se vai ser, ou não, convocado um novo Concílio, o importante é dar seqüência ao processo desencadeado pelo Vaticano II. Temos o que fazer, para implementar as intenções do Concílio!

Mas a constatação mais fecunda, me parece ser esta: este Concílio precisa ser olhado com grandeza de ânimo. Mesmo condicionado por diversas circunstâncias históricas, só nos situamos diante do Vaticano II reconhecendo suas grandes intenções e sua abertura de espírito.

Por tudo isto, dá para dizer que o Concílio não é um meteoro estranho, que passou perto de nosso planeta, e lentamente vai desaparecendo no horizonte. Ao contrário, a celebração do seu jubileu parece testemunhar sua atualidade!

2) Recordar o Concílio, para retomar sua dinâmica

O Concílio não foi, portanto, um evento alheio à realidade eclesial. Ele envolveu profundamente a Igreja. Estamos interessados em conhecer sua dinâmica, para, se possível, nos apropriar-nos dela, de tal modo que continue nos motivando, e fortalecendo nossa identidade eclesial.

Já ao ser anunciado, este Concílio desencadeou um intenso processo participativo, que entusiasmou toda a Igreja. Muitas pessoas sentiam que tinha chegado o tempo propício para empreender uma profunda renovação eclesial.

Agora vivemos um momento bem diferente. Os entusiasmos duram pouco. Por isto, é bom advertir que a memória dos acontecimentos do Concílio não pode levar a uma espécie de paralisia, fruto de um saudosismo inibidor, como se o dinamismo eclesial tivesse se esgotado com o término do Concílio.

A proposta, então, é esta: lembrar como foi viabilizado o Concílio, para ver como retomar sua dinâmica, no contexto em que nos encontramos agora.

3) Como surgiu o Concílio

À primeira vista, o relato dos acontecimentos que descrevem o surgimento do Concílio, pareceria indicar que o Concílio foi totalmente inesperado, sem vínculo histórico com as circunstâncias que o precederam.

Na verdade, houve sim uma dose grande de surpresas. Analisadas com atenção, se comprova que o Concílio se deu, sim, por uma inspiração divina, como não cansava de afirmar João23. Mas uma inspiração prontamente assumida, e sabiamente colocada em sintonia com o dinamismo eclesial já existente na época.

O surgimento do Concílio foi fruto da simbiose entre inspiração de Deus e iniciativa humana. João 23 não soube só reconhecer uma grande inspiração de Deus. Ele foi também um exímio estrategista. Ele soube revestir de motivação espiritual os seus generosos planos de iniciativas pessoais.

Os passos que conduziram João 23 a anunciar o Concílio, no dia 25 de janeiro de 1959, se constituíram numa série de surpresas, onde se podia reconhecer a mão da Providência, mas onde apareciam também as marcas da ação humana.

Colocar com desembaraço nossa ação humana no contexto da providência de Deus é, certamente, uma grande lição deixada por este Papa que surpreendeu o mundo por sua coragem humana e sensibilidade em perceber os sinais dos tempos.

A primeira surpresa foi a própria eleição do Cardeal Ângelo Roncali, com 77 anos, desconhecido de quase todo o mundo, com aparência de simples vigário de campanha, surpresa reforçada até pelo nome por ele assumido, de João 23!

Logo foi entendido como “papa de transição”. A surpresa maior foi descobrir que, na verdade, ele seria o papa DA grande transição!

Mas à surpresa de sua eleição, o novo Papa foi acrescentando outras surpresas, fruto de sua vivência pessoal, que muito contribuíram para preparar o clima favorável para o anúncio do Concílio.

Ele se mostrou logo como o “papa da bondade”. Uma bondade revestida de mística cristã, mas feita também de gestos humanos, que foram cativando a simpatia de todos. No Natal de 1958 ele saiu do Vaticano para visitar crianças doentes no hospital. No dia seguinte foi visitar os presos na cadeia de Roma.

Com estes gestos de autenticidade evangélica, João 23 pavimentou o caminho para o anúncio do Concílio, que foi prontamente aceito com entusiasmo, sobretudo pelo povo romano, que tinha logo aprendido a amar o seu papa simples e bondoso.

Para grandes planos, é preciso primeiro pavimentar o terreno com nossa autenticidade.

No anúncio do Concílio houve um evidente fenômeno de transferência afetiva. A grande simpatia pela pessoa do papa foi transferida para a ideia do concílio ecumênico. O concílio passou a ser olhado com entusiasmo e esperança, porque era proposto pelo Papa João 23.

Como nos inícios da Igreja, o povo animado do Espírito Santo servia de critério para guiar os passos da Igreja.

A generosa adesão do povo foi muito bem capitalizada por João 23. Assim o processo conciliar teve desde o início um grande respaldo popular, que servia de aval para as providências a serem tomadas.

Este fato nos dá um precioso ensinamento, e um bom desafio. Como fazer para perceber o rumo a seguir, sinalizado pelos “sinais dos tempos”, que nos revelam o “sensus fidelium”, como soube fazer João 23?

4) Momentos decisivos do Concílio

A memória do Concílio não é retilínea. Houve momentos que direcionaram o processo conciliar. Podemos identificar alguns deles, que acabaram definindo o rumo do Concílio.

4.1. O anúncio do Concílio.

O anúncio do Concílio, no dia 25 de janeiro de 1959, se constituiu no fato primordial de todo o Vaticano Segundo. Já vimos as circunstâncias em que se deu este anúncio, que desencadeou o processo conciliar.

Olhando a estratégia do Papa, de difundir a notícia pela imprensa antes de comunicá-la aos cardeais, para evitar possíveis resistências, e constado como perduram, ainda hoje certas resistências, ficam algumas perguntas que nos alertam. .

Ao longo de todo o Concílio, será que não faltou um diálogo maduro e franco, para superar as resistências, mesmo sabendo que podiam ser fruto de preconceitos ultrapassados?

4.2. Ampla consulta às bases

A “comissão ante preparatória”, foi incumbida de elencar os assuntos a serem abordados pelo Concílio. Ela foi muito feliz em dar a palavra às bases, através de ampla consulta, endereçada aos bispos do mundo inteiro, às congregações religiosas, aos reitores de universidades católicas, e aos membros da Cúria Romana.

Com a resposta de 77% dos entrevistados, foi possível não só recolher preciosas sugestões para a temática do Concílio, mas perceber também como é válido dar atenção às bases, e valorizar o que o povo tem a dizer.

4.3. Expectativa mundial em torno de um evento eclesial

Desde o início, já no dia do seu anúncio, o Concílio entrou na pauta das agências de notícias. Foi muito significativo o interesse do mundo em acompanhar um evento da Igreja.

É sintoma positivo quando a Igreja se torna sinal de esperança para o mundo. Como estamos hoje?

4.4. O discurso de abertura do Concílio

Repercutiu muito o discurso de João 23 no dia da abertura do Concílio Não deixou dúvidas que o Concílio era mesmo para valer. A Igreja precisava atualizar a maneira de apresentar ao mundo as verdades perenes, que precisam ser bem captadas em cada época.

Repercutiu, sobretudo, a disposição da Igreja diante dos erros, preferindo “usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade.”.

E a recomendação da Igreja de se mostrar “mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados”.

Este devia ser um concílio sem nenhum anátema!

Diante desta generosa proposta de João 23, vale perguntar se é ainda esta a postura da Igreja, ou, parafraseando o salmo, “… a mão da Igreja mudou, não é mais a mesma”!

4.5. A eleição dos membros das comissões conciliares

Uma providência muito importante foi tomada pelos bispos na sua primeira sessão de trabalho. Precisavam escolher 16 nomes para cada uma das dez comissões conciliares Como podiam tirar da cabeça tantos nomes, assim de improviso? Graças à intervenção do Cardeal Liénard, secundado por outros, a escolha foi adiada, com três dias para os episcopados se consultarem entre si, em vista de identificar os nomes mais convenientes a serem indicados.

Assim ficou garantida a representatividade do episcopado mundial

Com isto, os bispos se apropriaram do espaço conciliar, que lhes pertencia de fato.

Como ocupar os espaços que são nossos? Como colocá-los a serviço da Igreja e da sociedade? Esta é outra questão, que o concílio nos propõe.

4. 6. Prioridade dada à liturgia

O primeiro assunto debatido no Concílio, no começo da primeira sessão anual, foi a liturgia. Foi uma feliz escolha. Pois o assunto era o mais próximo a cada bispo, e despertava um interesse imediato.

Além do mais, era o esquema mais maduro, que recolhia os esforços do Movimento Litúrgico, um dos principais movimentos que precederam o Vaticano II

Os debates em torno da liturgia serviram também para os bispos afinarem um pouco melhor o seu latim, seja para as intervenções na aula conciliar, como sobretudo para entenderem o que se falava. A liturgia aplainou o caminho dos debates conciliares. Serviu para amaciar o motor para a longa viagem que estava à frente.

4.7. A primeira rejeição de um esquema

Terminado o debate preliminar sobre a liturgia, e aprovado o seu esquema como “base para o documento conciliar”, foi introduzido outro tema, cujo desfecho seria surpreendente, e iria provocar um alinhamento do plenário, que atravessou depois todo o Concílio.

Acontece que o esquema sobre a Revelação, “De fontibus revelationis”, era vazado em termos fortemente polêmicos, próprios ainda da “Contra Reforma”. Em contraste, portanto, com a proposta de João 23, de buscar a aproximação com os “irmãos separados”.

Levado à votação, expressiva maioria se mostrou contrária ao documento, pedindo sua substituição. Mas faltaram poucos votos para atingir os dois terços necessários para rejeitar um esquema, de acordo com o regulamento. Parecia criado um impasse difícil de contornar.

Foi então que João 23 interveio pela primeira vez nos trabalhos conciliares, mandando substituir o esquema por outro mais de acordo com as expectativas ecumênicas.

O fato teve grande repercussão, e conseqüências práticas muito determinantes, pois de certa maneira conformou uma expressiva maioria conciliar, feita dos que tinham votado contra o documento, e acrescida de muitos outros bispos que no gesto do Papa perceberam que ele não se prendia aos esquemas preparatórios, muitos deles vazados ainda em linguagem da contra-reforma. A partir daí, as votações encontraram um claro critério de posicionamento, que atravessou todo o concílio.

Alguns historiadores chegam a identificar naquele gesto do Papa o fim da “contrarreforma”. Ela teria se encerrado no dia 20 de novembro de 1962, data da decisão de João 23 de mandar retirar o polêmico esquema sobre “as fontes da revelação”.

Aqui se introduz outra ponderação, que não é fora de propósito. Trata-se da oportunidade que um evento extraordinário oferece, para superar preconceitos cristalizados há séculos, romper resistências, e abrir espaços para um clima de diálogo.

Foi o que proporcionou este Concílio, possibilitando uma nova relação, de diálogo e de respeito, entre católicos e “irmãos separados”. E em boa parte, somente à luz do forte impacto do concílio se compreende a aceitação das grandes mudanças efetivadas na liturgia. E se compreende como alguns ainda não as tenham aceitado.

Em todo o caso, fica o desafio: como canalizar as energias positivas dos acontecimentos que causam impactos, e podem provocar mudanças.

No que se refere ao ecumenismo, será que não desperdiçamos uma preciosa oportunidade de maior aproximação e de compromissos progressivos em direção à plena reconciliação?

4.8. A redução dos esquemas preparatórios

No intervalo entre a primeira e a segunda sessão, foi tomada uma importante decisão. Foi reduzido drasticamente o número dos esquemas preparatórios. Eram pouco mais de setenta. Foram reduzidos a pouco mais de dez.

Isto foi possível porque no final da primeira sessão, ao iniciar a análise do esquema sobre a Igreja, os bispos se deram conta, muito claramente, que tinham chegado ao tema central, que poderia aglutinar todos os outros.

Tinha emergido o núcleo central do Concílio. Este seria um concílio claramente “eclesiológico”, enquanto os primeiros concílios da Igreja tenham sido claramente “cristológicos”.

Estava definida a tarefa do Concílio: apresentar a verdadeira identidade da Igreja, na sua natureza e na sua missão, no contexto do mundo de hoje. Uma Igreja comprometida com a renovação, inspirada no Evangelho de Cristo e no exemplo da Igreja Primitiva, comprometida com a causa da unidade dos cristãos, e inserida na sociedade, com quem se mostra solidária na busca da justiça, da fraternidade e da paz. Um objetivo que certamente demanda muito tempo para ser implementado!

A partir daí, o Concílio estava bem centrado, tinha um tema que nucleava todos os outros assuntos.

Em nossa pastoral também é importante encontrar um núcleo central, que possa dar organicidade à diversidade de aspectos e de atividades.

4.9. A Igreja como Povo de Deus

A importância teológica e pastoral desta opção do Concilio

A ideia de acrescentar um capítulo sobre a Igreja como Povo de Deus, antes do capítulo sobre a Hierarquia, foi prontamente assumida, e o gesto foi interpretado como expressão concreta do Concílio, para fundamentar uma visão de Igreja que superasse as discriminações.

Esta opção de privilegiar a visão de Igreja como Povo de Deus teve tanta repercussão no Concílio, que ela se assemelhou à famosa “revolução copernicana”, quando a humanidade se deu conta, ajudada por Copérnico, que não era o sol que girava ao redor da terra, mas a terra que girava ao redor do sol.

Assim a centralidade da Igreja não estava na hierarquia, mas no Povo de Deus, que inclui todos os membros da Igreja, de maneira igualitária e fundamental, e a serviço do qual está a hierarquia.

Com a introdução do capítulo sobre o Povo de Deus, o Concílio fazia a clara opção de uma visão bíblica e ao mesmo tempo histórica da Igreja.

A visão de Igreja como Povo de Deus possui uma centralidade, cujo alcance pode escapar a uma análise superficial da eclesiologia do Vaticano Segundo.

O Capítulo Segundo da Lumen Gentium tem uma centralidade dinâmica. Possibilita situar a Igreja no seu relacionamento histórico com a diversidade de “povos, línguas e nações”, afinal, na sua encarnação concreta e na sua vizinhança com a realidade histórica da humanidade.

Por isto, parece equivocada a interpretação divulgada a partir do Sínodo especial comemorativo dos 20 anos do Concílio, em 1985, que teria relativizado a visão de Igreja Povo de Deus, para ressaltar a dimensão de Igreja como mistério de comunhão.

A afirmação do Concílio, para ser bem entendida, precisa ser situada no contexto histórico em que foi formulada. Ela serviu para fundamentar uma nova visão de Igreja, que vinha ao encontro das grandes expectativas de renovação eclesial, que o Concílio tinha desencadeado.

4.10. Colegialidade Episcopal: uma Igreja corresponsável e participativa

Ao lado da importância da visão de Igreja como Povo de Deus, o Vaticano II enfrentou a questão da Colegialidade Episcopal, de grande peso teológico, que estava pendente desde o Vaticano Primeiro.

Colocado o capítulo sobre a hierarquia depois do capitulo sobre o Povo de Deus, ficou mais fácil de compreender a hierarquia como um serviço ao Povo de Deus, e partir daí entender sua importância, e sua missão específica.

Neste Capitulo, de maneira mais destacada, o Concílio analisa e define a natureza e a missão do Episcopado, entendido como um sacramento com dimensão eclesial muito clara e fundamental.

Não é o caso de discorrer aqui sobre as múltiplas decorrências que poderiam advir de uma prática mais adequada da Colegialidade Episcopal. Ela simboliza a corresponsabilidade eclesial, com o incentivo para a participação de todos na vida e na missão da Igreja.

Mas no mínimo é conveniente ressaltar que da reta visão da colegialidade, e da visão da Igreja como Povo de Deus, derivam as grandes intuições pastorais do Concilio Vaticano Segundo.

Em especial, a importância das Igrejas Locais, como concretizações da Igreja nas realidades onde ela se insere, na diversidade de raças e culturas.

Igualmente a importância das comunidades eclesiais, onde o Evangelho pode ser vivido na prática da convivência cotidiana e da inserção no mundo.

5 ) Contexto histórico do Vaticano II

Não se entende o Concílio Vaticano II sem ter presente o ambiente histórico em que ele se realizou.

As décadas de 50 e de 60 foram as mais otimistas dos últimos séculos. A Europa estava em pela reconstrução no pós-guerra. A humanidade iniciava sua carreira espacial, com a meta de chegar na lua antes do final da década de sessenta.

Na política estava acontecendo a distensão entre leste e oeste, com Kennedy nos Estados Unidos, Kruchev na União Soviética, e João 23 no Vaticano.

As nações da África iam proclamando sua independência e o mito do desenvolvimento sem limites contagiava a todos.

Foi neste clima de otimismo e de esperança que se realizou o Vaticano II.

A Igreja percebeu a hora da graça, soube aproveitar as condições favoráveis que a história lhe proporcionava para mobilizar a Igreja para um evento de tamanha envergadura, como seria o Concílio Vaticano II.

Esses tempos de otimismo duraram pouco. Já no final da década de sessenta, eclodiu em 1968 a revolta dos estudantes na França, sintoma da grande transformação cultural que a secularização iria espalhar rapidamente pela Europa e pelos países do primeiro mundo.

A propósito da secularização, com os profundos impactos que ela trouxe, alguns fazem uma leitura equivocada da história. Porque a secularização ocorreu depois do Concílio, se conclui, erroneamente, que ela foi causada pelo Concílio.

Não deixa de ser verdade que a recepção do Concílio coincidiu em muitos lugares com a chegada da secularização, confundindo as cabeças de muitas pessoas. .

Fica outro bom desafio: como aproveitar os ventos favoráveis da história, para conduzir melhor a barca da Igreja.

6) Movimentos eclesiais que precederam o Concílio

Outro ponto indispensável para compreendermos o Concílio, é perceber a importância que tiveram os diversos movimentos eclesiais que o precederam. Todos consistentes, e denotando a vitalidade que há mais tempo vinha acontecendo na Igreja.

Basta aqui citar esses movimentos, para perceber como o anúncio do Concílio encontrou a Igreja em pleno dinamismo.

Os movimentos litúrgico, bíblico, ecumênico, teológico despertavam o interesse pelas questões próprias de cada um, levando muitas pessoas a aderirem a estes movimentos com conhecimento de causa e boa formação.

Basta conferir a consistência do movimento litúrgico, com diversos mosteiros servindo de referência para o estudo e aprofundamento das questões litúrgicas. Eles ofereceram as bases para a Igreja propor uma reforma litúrgica em profundidade, e que precisa de tempo adequado para se consolidar!

Por sua vez, a Ação Católica, proporcionava a participação de muitos cristãos nas realidades políticas e sociais. E o “movimento por um mundo melhor” motivava seus membros a assumirem a fé cristã com mais ardor e convicção.

Pois bem, a constatação da força destes movimentos anteriores ao Concílio nos ajuda a perceber que o Concílio não prescindiu da caminhada anterior da Igreja, nem provocou rupturas com ela.

Ao contrário, soube valorizar estes movimentos, tornando-se estuário de todos eles, recolhendo a preciosa contribuição que tinham dado para a Igreja. Eles proporcionaram ao Concílio a plêiade de peritos, competentes em seus respectivos ramos

Assim fazendo, o concílio nos deixa uma lição, a ser aprendida com discernimento. .

Como o Concílio, nós também somos chamados a valorizar as riquezas que brotam da vida do Povo de Deus. Mesmo que às vezes seja necessário superar preconceitos. Diversos dos grandes teólogos que prestaram sua competente contribuição, tinham sido colocados sob suspeita, e até proibidos de lecionar.

Com a abertura causada pelo Concílio, foram reintegrados na vida eclesial, e convocados como peritos.

Muitas vezes a renovação da Igreja passa pelo endereço de pessoas que são olhadas com reserva.

Somos chamados a retomar nosso protagonismo eclesial, agindo com espírito evangélico, com alegria, competência e liberdade.

É a partir da ação de cada um que a Igreja se renova e cresce.

Conclusão

O Concílio foi escola de vivência eclesial. Os diversos momentos decisivos do Concílio se constituem em exemplo de atuação eclesial bem conduzida.

Independente de quando vamos ter um outro Concílio, o que importa é resgatar o processo conciliar, vivendo a conciliariedade da Igreja, com sua prática de estar atenta aos sinais dos tempos, com a certeza de contar com a atuação do Espírito quando ela se reúne para discernir os passos a dar.

Assim o Concílio fica integrado na vida da Igreja, e nós podemos continuar a sua dinâmica.