Fatos novos podem reabrir caso Dorothy
24 de julho de 2012
O depoimento de um policial federal, lavrado em cartório de Belém, tem todos os ingredientes necessários para provocar a reabertura do processo judicial do assassinato, em fevereiro de 2005, da missionária norte-americana naturalizada brasileira, Dorothy Stang. O agente da PF Fernando Luiz da Silva Raiol – que durante três meses foi designado pelo Ministério da Justiça para fazer a segurança pessoal da missionária e depois que ela foi morta participou das investigações para identificar os autores do crime – confirmou declarações prestadas em entrevista concedida recentemente a uma revista pelo intermediário do assassinato, Amair Feijoli da Cunha, o “Tato”. Ele afirma que o revólver calibre 38, usado para matar com seis tiros a missionária, foi a ele fornecido pelo delegado de Anapu à época, Marcelo Luz.
“A arma foi entregue em um posto de gasolina de Anapu”, garantiu Raiol ao Diário. A própria Polícia Federal não conseguiu descobrir, mesmo depois de exaustiva pesquisa, como o revólver, fabricado antes de 1997 pela empresa Taurus, acabou indo parar nas mãos de “Tato”, hoje um homem convertido à igreja evangélica e que se diz “arrependido” de fazer acusações contra inocentes. Ele se refere a Vitalmiro Bastos Moura, o “Bida”, a quem apontou como mandante do assassinato, desmentindo depois a própria versão.
Em outra declaração firmada em documento no cartório Queiroz Santos e cuja cópia o jornal teve acesso, Raiol relata que, durante o interrogatório de “Bida”, presenciou o momento em que o fazendeiro confirmou às autoridades que o delegado Marcelo Luz exigia de cada fazendeiro local a quantia de R$ 10 mil para garantir a segurança das fazendas contra invasores ligados a missionária.
Segundo o agente federal, o único que recusou a proposta de segurança foi “Bida”, uma vez que ele já tinha decisão judicial concedendo-lhe a reintegração de posse de uma área invadida por agricultores ligados a irmã Dorothy. Raiol conta ainda que no momento das declarações contra o delegado Marcelo Luz, feita pelo fazendeiro, o delegado Waldir Freire, que interrogava “Bida”, determinou a retirada imediata de Marcelo Luz da sala para preservá-lo, “fortalecendo o corporativismo existente”.
Ao mandar que o delegado deixasse a sala, de acordo com o agente, Freire teria prometido que as acusações de “Bida” contra Luz “seriam investigadas rigorosamente”. Ocorre, completa Raiol, que isso não foi devidamente apurado até a presente data. No depoimento, ele narra que todas as autoridades responsáveis pela investigação sabiam que Dorothy tinha sido assassinada no sábado pela manhã e que na segunda-feira foi decretada a prisão de um representante dos fazendeiros, sem até mesmo ter sido efetuado as prisões do intermediário e do executor do crime.
CONSÓRCIO
A denúncia informa que a equipe de investigações era sabedora de que o delegado Marcelo Luz não tinha naquela oportunidade indícios suficientes de autoria para fundamentar o pedido de prisão dos acusados, tendo em vista que apenas por intermédio do interrogatório dos foragidos poderia fazê-lo. Também declara que toda a equipe de investigação ficou ciente que o delegado optou pela prisão de um dos fazendeiros, no caso “Bida”, somente para desviar a possibilidade de o próprio delegado ser envolvido no crime por ter fornecido a arma.
“A prisão de um dos fazendeiros iria justificar o assassinato da missionária, em que pese a ação e postura da vítima frontalmente colidir com as dos fazendeiros, pois esses teriam motivos para assassiná-la”, destaca o agente. De acordo com ele, o consórcio tão mencionado não diz respeito a fazendeiros reunidos em prol de assassinar a freira, mas em prol de financiar a proteção corrupta do delegado local. Além disso, denuncia, houve um acordo entre as autoridades investigativas do caso para culpar os fazendeiros e não comprometer o delegado.
Polícia investigará nova denúncia
O delegado-geral da Polícia Civil, Nilton Atayde, procurado pelo Diário, foi informado e recebeu cópia das declarações do agente federal. Ele anunciou que irá determinar a abertura de inquérito para apurar as acusações. Ele disse que os fatos narrados precisam ser esclarecidos pelas pessoas envolvidas. “É preciso verificar se houve apuração à época dessas denúncias e qual o resultado. Se não houve, isso terá que ser feito”, resumiu o chefe da polícia paraense.
Para o procurador da República, Felício Pontes Júnior, que acompanhou a apuração do crime e a condenação dos denunciados pelo Ministério Público, o depoimento do agente “é bombástico” e enseja uma apuração rigorosa que esclareça fatos que surgiram sobre a existência de um consórcio de poderosos interesses na morte da missionária.
Felício também entende que os fatos agora revelados poderiam ser suficientes para reabrir o caso. Ele relembra que Dorothy esteve na polícia por diversas vezes, denunciando as ameaças que sofria, mas nenhuma providência foi tomada.
O coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Belém, Paulo Joanil da Silva, o padre Paulinho, acredita que o depoimento de Fernando Raiol é muito importante e pertinente. “O povo espera, a sociedade espera os fatos novos que nunca vieram, mas que agora estão vindo à tona”, afirmou. Para ele, tudo deve ser apurado pelas autoridades em um novo inquérito que esclareça os fatos que estão surgindo. O jornalismo investigativo, na avaliação do padre, deve contribuir para “combater a impunidade” no Pará.
“É mentira o que estão dizendo”
Lotado atualmente em Viseu, na região nordeste do Estado, o delegado Marcelo Luz, que sempre foi arredio a jornalistas, rebate, nessa entrevista ao DIÁRIO, as acusações de “Tato” e Raiol, de que teria fornecido a arma com a qual Rayfran Sales, o “Fogoió”, matou a missionária Dorothy Stang. Além disso, nega ter pedido propina de R$ 10 mil a cada fazendeiro de Anapu, afirmando que quem fazia isso era outro delegado. “Agora não existem reclamações contra esse PM. e ele pegava propina antes de eu chegar. Eu cheguei em Anapu em outubro de 2004”, acusa Luz.
Pergunta – Delegado, o que o sr. tem a dizer sobre as acusações de que entregou ao Amair Feijoli da Cunha, o “Tato” , a arma que matou a irmã Dorothy?
Resposta – Isso aí é mentira. Na época, inclusive, seja Polícia Federal, Polícia Civil, Inteligência, Corregedoria, tudo quanto foi polícia especializada, investigou isso. É mentira o que eles estão dizendo.
P – Mas o agente da PF, Fernando Raiol, que estava na região na época do crime, diz que o sr. entregou a arma ao “Tato” no posto de gasolina da cidade de Anapu.
R- É mentira, ele está dizendo isso para proteger alguma coisa. É alguma jogada dele.
P- E no caso da denúncia de que o sr. cobrava propina dos fazendeiros de Anapu para proteger as terras deles contra o pessoal da missionária?
R- Isso é mentira. Eu não tinha nenhum contato. Na delegacia era só eu, um escrivão e um investigador. A gente mal tinha tempo para tomar conta da cidade, imagina dar proteção aos fazendeiros. Como é que com três pessoas eu podia dar proteção, numa região imensa e perigosa? Quem precisava de proteção éramos nós. Essas acusações são todas mentirosas.
P- É verdade que durante o depoimento do “Bida”, no dia em que ele foi preso, o delegado que presidia o inquérito, Waldir Freire, mandou que o sr. saísse da sala para protegê-lo em razão das acusações de cobrança de propina?
R- Isso não aconteceu. Existem procedimentos nos autos, antes mesmo da morte da irmã Dorothy, de ameaças do “Tato” e seus capangas contra a irmã Dorothy. Isso foi feito e encaminhado para o fórum da comarca de Pacajá. Inclusive, na época, o Rayfran e o Clodoaldo, citados nesses procedimentos, deram nomes errados. Fui eu que fiz esses procedimentos e mandei para Pacajá. Jamais tive envolvimento com os fazendeiros, se tivesse não teria feito os procedimentos contra o “Tato” e os pistoleiros.
P- Se esse caso for reaberto, o sr. estaria disposto a contar tudo o que sabe, para esclarecer de uma vez por todas as dúvidas que sempre surgem, envolvendo seu nome e um possível consórcio de fazendeiros para matar a Dorothy?
R- Com certeza, eu quero esclarecer. Tenho provas das ações que tomei. Quando recebia denúncias de ameaças, imediatamente tomava as providências.
P- A missionária denunciou várias vezes que pedia ajuda da polícia para ir às terras do PSD ver o que os fazendeiros estavam fazendo, mas o sr. recusava os pedidos.
R- Isso não é verdade. Eu sempre fazia trabalho de policial civil, trabalho investigativo. Não é papel da Polícia Civil entrar em áreas de conflito agrário. Nosso papel era apenas apurar os fatos que surgiam. A gente ficava até sem carro para o trabalho. O carro estava sempre no conserto. Na quinta-feira, antes da morte da irmã Dorothy, o carro tinha ido para Belém para fazer a revisão. Ela foi morta no sábado.
P- A irmã Dorothy foi indiciada em um homicídio em conflito de terra pela Polícia Civil.
R- Não fui eu quem indiciei a irmã Dorothy, foi o delegado P.M. Agora não existem reclamações contra esse delegado e ele pegava propina antes de eu chegar. Eu cheguei a Anapu em outubro de 2004.
P- Já havia reclamações de que o delegado pegava propina antes de o sr. chegar ao município? Por que o sr. não pediu providências para que isso fosse apurado?
R – Eu não vou entrar em detalhes, porque quem tem que ver isso é a corregedoria. Inclusive tem uma fazenda lá onde mataram vários trabalhadores. Alguma coisa houve que não puderam explicar e pegaram uma propina muito alta. Eu sabia dessa situação por alto, mas não entramos em detalhes.
Relembre
O CRIME
Dorothy Mae Stang, de 73 anos, missionária norte-americana naturalizada brasileira, foi morta com seis tiros por Rayfran das Neves Sales, o “Fogoió”, no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, no centro do Pará.
O MOTIVO
A missionária contrariava interesses de grandes fazendeiros ao defender uma vida digna, com geração de emprego, renda e preservação da floresta, em terras da União Federal, para famílias de agricultores envolvidas em um projeto de desenvolvimento sustentado conhecido por PDS.