Primeira Encíclica do Papa Francisco
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Lumen fedi (A luz da fé) é o título da Primeira Encíclica do Papa Francisco. Na verdade, o texto vinha sendo elaborado pelo seu antecessor, Papa Bento XVI, e foi concluído pelo atual Pontífice. Logo na introdução, e citando Nietzsche, o documento se confronta com a razão iluminista e instrumental, segundo a qual, muitas vezes, “o crer se oporia ao investigar” (LF, nº 2). Daí a acusação de obscurantismo que pesou sobre a Igreja na aurora da modernidade e especialmente no “século das luzes”. “A fé seria então como uma ilusão de luz que impede o nosso caminho de homens livres em direção ao amanhã” (LF, nº 2).
Entretanto, com o passar do tempo a acusação se volta contra a própria razão. Se é verdade que, em alguns aspectos e circunstâncias relacionados às novas descobertas científicas a Igreja se manteve obscurantista (Cfr. a inquisião, as cruzadas, o caso Galileu Galilei, Giordanio Bruno, etc.), também é certo que a ciência e a tecnologia, apesar dos avanços no conforto humano, nas comunicações, na medicina e nos transportes (só para citar alguns exemplos), em momentos bem específicos transformou promessas em catástrofes, sonhos em pesadelos. Basta ter em mente a barbárie do século XX, século de duas guerras mundiais altamente mortíferas, de colonialismos e genocídios, dos regimes totalitários que caracterizaram a década de 1930, de inúmeros conflitos localizados, de crescente desigualdade social, e sobretudo do holocausto. Como diz o Papa, “pouco a pouco, porém, viu-se que a luz da razão não consegue iluminar suficientemente o futuro; no fim, este permanece na sua obscuridade e deixa o homem no medo do desconhecido” (LF, nº 3). A própria razão revelou-se ilusória.
Na relação entre razão e fé, portanto, mais do que o confronto é preciso ter em vista o diálogo recíproco entre as duas dimensões, ambas necessárias à breve peregrinação humana sobre a face da terra, como de resto já recordava a a encíclica Fides e Ratio, do então Papa João Paulo II, publicada em setembro de 1998. Nesse caso, da mesma forma que a fé constitui “uma luz e ser redescoberta” e com a qual “recebemos olhos novos” (LF, nº 4), a razão, se e quando iluminada por essa luz, torna-se mais humilde e menos prepotende, no sentido de reconhecer, ao mesmo tempo, a importância e a relatividade de todo conhecimento humano. Com isso, evita-se absolutizar qualquer formação histórica, seja ela de caráter socioeconômico ou político-cultural. Convém não esquecer que o mesmo povo que ergue estátuas costuma reduzi-las a cinzas e escombros.
No contexto do Ano da fé, iniciado pelo Papa Bento XVI em 2012, em comemoração ao cinquentenário de abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II, continua o texto, a fé se mantém como uma instância crítica, a qual, embora encarnada nos embates sociais, econômicos, políticos e culturais da história, sempre abre novos rumos. É uma luz que “procede do passado, de uma memória fundante” e, simultaneamente, “é luz que vem do futuro, que descortina diante de nós horizontes grandes, e nos conduz além do nosso ‘eu’ isolado a uma amplitude da comunhã” (LF, nº 4). Reconhece que a existência humana não se reduz à construção de formulações sociais e que estas sempre serão provisórias e imperfeitas. A pessoa humana, homem e mulher, carregam no seu DNA a busca de superação dos própros limites, até desembocar na transcendência, onde tudo será luz e transparência.
Dessa forma, a dimensão da fé, longe de escravizar a capacidade humana, que utiliza a razão em vista de um progresso crescente, lhe confere uma nova luz que “ilumina o caminho do futuro e faz crescer em nós as asas da esperança para percorrê-lo com alegria” (LF, nº 6). Luz que, por outro lado, nos ajuda a relativizar a frenética corrida pelo bens materiais; o dinheiro, riqueza e poder, as honras e títulos, o prazer imediato e momentâneo e, ao mesmo tempo fátuo e vazio; o fascício sedutor pelo consumismo – na certeza de um tesouro oculto, sim, mas infinitamente mais vivo, rico e brilhante. Sob os raios dessa luz, tudo aquilo que às vezes se busca com uma ansiedade doentia e móbida pode se tornar um nada; e aquele nada que às vezes nos parece a presença invisível de Deus torna-se um tudo. Além do mais, ajuda-nos a manter viva a chama da crítica diante de formações político-econômicas que, quando levadas ao extremo absoluto, podem conduzir ao autoritarismo ou mesmo ao totalitarismo. Nesta perspectiva, a fé se opõe às ideologias cristalizadas no tempo, sejam elas de direita, de esquerda ou de centro (embora estes conceitos tenham se mesclados de tal forma que as fronteiras entre eles se apresentam hoje muito fluídas e porosas).
Retomando o caminho de Abraão e do Povo de Israel, até a experiência do apóstolo Paulo, sublinhando sobretudo o mistéro da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus (LF, capítulos 1 e 2), o texto insiste que “a fé é capaz de oferecer uma luz nova” (Lf, nº 24), na medida em que ela se apresenta como escuta e visão. Enquanto a escuta, no silêncio da oração, “contribui a reafirmar o nexo entre conhecimento e amor”, na medida em que este último amplia o leque de um saber não tanto quantitativo, mas em profundidade e qualidade; a visão “oferece um panoramo de todo o percurso humano e permite situar-se no grande projeto de Deus”. Sem isso, “estaríamos diante de simples fragmentos isolados de um todo desconhecido” (LF, nº 29). Assim que “crer é escutar e, ao mesmo tempo, ver (…). Crer e ver se entrelaçam” (LF, nº 30).
Reportando-se à vida de Santo Agostinho, o Papa afirma que “fé e razão se reforçam reciprocamente”. Fundindo a filosofia grega com a descoberta do Deus pessoal da Bíblia, tanto Santo Agostinho como Santo Tomás d’Aquino criam entre razão e fé uma espécie de “movimento circular”, no qual “a luz da fé ilumina todas as nossas relações humanas”. Em outras palavras, “a fé desperta o senso crítico, pois impede à investigação de satisfazer-se nas suas fórmulas, ajudando-a a entender que a natureza é sempre maior. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para melhor iluminar o mundo que se descortina diante dos estudos da ciência” (LF, nº 34). Porder-se-ia dizer que a fé confere olhos para ver o invisível atrás do véu do futuro.
Diferentemente dos déspotas e tiranos, para os quais é preciso abolir a memória e a profecia, ambas subversivas diante da ordem estabelecida, do status quo, a fé crê na irrupção de Deus na história humana. “O homem religioso é a caminho e deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar Deus que sempre surpreende”. Um Deus que, como no Livro do Êxodo, rompe os diques da escravidão, da exploração e da opressão, para reabrir os caminhos da história, propondo-lhe sempre novas alternativas. Neste sentido, “não existe nenhuma experiência humana, nenhum itinerário do homem em direção a Deus, que não possa ser acolhido, iluminado e purificado com esa luz da fé” (LF, nº 35). Longe de opor-se à liberdade humana, Deus reveste sua obra de um sentido mais profundo e sobrenatural, abrindo à razão potencialidades sempre renovadas diante do futuro. Como no caso da Boa Nova de Jesus Cristo!
Não é um Deus sentado no trono do templo ou do palácio, rodeado de ouro, prata e pompas luxuosas, cioso e ciumento do seu poder, protegido por soldados e armas, que se nutre dos sacrifícios humanos; ou seja, não é um ídolo que engendra a idolatria (LF, nº 13), mas um Deus que vê a miséria, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para libertar, como reza o credo histórico (Ex 37-10; Dt 26,5-10); um Deus que caminha conosco na história: no êxodo, no deserto, no exílio, na diáspora de todos os povos e de todos os tempos. “A confissão de fé de Israel desenvolve-se como narração dos benefícios de Deus, do seu agir para libertar e guiar o povo”, desde que este manifeste a “disponibilidade de deixar-se sempre transformar de novo pelo chamado de Deus” (LF nº 12-13). Um Deus a um só tempo oculto e reconhecido por aqueles que estão a caminho, como no episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).
O quarto e último capítulo está centrado na fé enquanto dimensão que, se levada a sério, resgata simultaneamente a família e o bem comum. De fato, “na família, a fé acompanha todas as etapas da vida, a começar pela infância”. Mas o texto adverte que “a fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida. Ela faz descobrir um grande chamado á vocação do amor e assegura que este amor é confiável, porque o seu fundamento encontra-se na fidelidade de Deus, mais forte que nossa humana fragilidade” (LF, nº 53). Ou seja, a luz da fé não ilumina apenas o âmbito familiar, com os parentes mais próximos.
Ao contráro, a partir de uma casa sólida como deveria ser a família, a fé alarga seu olhar aos outros e à sociedade como um todo, isto é, a toda a humanidade que se debate debaixo do sol. Entramos aqui, queiramos ou não, na esfera da política, da organização social, das relações nacionais e internacionais. Vale, portanto, uma citação um pouco mais ampla: “A fé revela quanto possam ser sólidos os vínculos entre os homens quando Deus se faz pesente no meio deles. Não evoca somente uma solidariedade interior, uma convicção estável de crença; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus confiável dá ao homem uma cidade confiável” (LF, nº 50).
Sabemos, porém, que esse dom de Deus sobre “uma cidade confiável” – sociedade justa e solidária, Reino de Deus, terra sem males – passa pelas mãos humanas. Deus age em nossa vida pessoal e familiar, comunitária e social, política e cultural, somente através das coordenadas da história. Não substitui a tarefa de homens e mulheres nem lhes tolhe a liberdade. Mostra-se a um só tempo poderoso e frágil, porque sua única arma é o amor. Amor é flor exposta ao vento das intempéries. “Deus é amor”, diz o quarto evangelista, caminha ao nosso lado no labirinto e nas turbulência do tempo, mas a construção da “cidade santa” inicia-se com o trabalho de nosas mãos. Contudo, não estamos sós nem órfãos.
A cidade provisória e imperfeita espera ansiosa pela luz divina para resplandecer eternamente na gloria. De acordo com o Livro do Apocalipse (capítulo 21), Deus faz da cidade dos homens uma tenda. Longe de rejeitar a obra humana, resgata-a com sua graça recriado a “Jerusalém Celeste”. Seja-me permitido concluir com outra longa citação do Papa Francisco: “na unidade com a fé e a caridade, a esperança nos projeta em direção a um futuro certo, que se coloca numa prospectiva diversa com respeito às propostas ilusórias dos ídolos do mundo, mas que dá nova abertura e nova força ao viver cotidiano. Não deixemos que nos roubem a esperança, não permitamos que seja banalizada com soluções e propostas imediatas que nos bloqueiam no caminho, que ‘fragmentam’ o tempo, transformando-o em espaço. O tempo é sempre superior ao espaço. O espaço cristaliza os processos, o tempo ao invés projeta em direção ao futuro e impele a caminhar com esperança” (LF, nº 57).
Roma, 12 de julho de 2013