Cristianismo esquizofrênico
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O termo esquisofrenia provém do universo da psicologia ou da psicoterapia. De acordo com os dicionários da língua portuguesa, designa “uma demência precoce caracterizada por distúbios da afetividade”, ou também “uma desintegração da personalidade humana”. Transposto ao campo religioso, pode ser utilizado como metáfora para definir aqueles que, implícita ou explicitamente, costumam separar a fé do comportamento prático, seja este de ordem pastoral, socioeconômico ou político-cultural. Atualmente constituem uma boa fatia dos que se declaram “cristãos”. Normalmente participam dos sacramentos, das práticas religiosas, do culto da Palavra ou da eucaristia, ao mesmo tempo que, no mundo dos negócios, do lugar em que moram e do trabalho, o seu modo de ser não sofre qualquer influência da mensagem evangélica. Con frequência, apreciam e admiram as palavras do Papa, do sacerdote, do pastor ou de qualquer outra autoridade religiosa (por exemplo), mas isso não significa aceitá-las na prática. Conseguem estabelecer uma distância razoável entre o “autodefnir-se como cristão” e o “viver como cristão”. No geral, revelam-se capazes de blindar a própria existência contra as exigências de uma fé levada verdadeiramente a sério, subtraindo-se às consequências da mesma. De resto, em grau maior ou menor, essa distância entre fé e vida existe em todos nós. “Tra il dire e il fare in mezzo c’è il mare”, diz um provérbo italiano.
No caso específico do catolicismo, a fé em Jesus Cristo torna-se um sentimento de natureza privada, intimista e espiritualizante, sem implicações diretas no contexto histórico em que a pessoa se encontra inserida. Prevalece um dualismo muitas vezes inconsciente: enquanto o “encontro com Deus” na oração pessoal, na piedade comunitária ou na celebração eucarística adquire um caráter estático de êxtase e fácil entusiasmo, o “encontro com os irmãos” mantém-se frio e indiferente diante da injustiça e da opressão, do sofrimento e da exclusão social. Não é incomum encontrar grandes empreendedores e renomadas autoridades (na área das finanças, da agro-indústria, das tele-comunicações, da mineração, da política e das redes comerciais – só para citar alguns exemplos) que se revelam assíduos na oração e na missa, mas contemporaneamente não exitam em pagar salários irrisórios, em manter enormes latifúndios, em apropriar-se indevidamente da rex publica ou em explorar a mão-de-obra fácil e barata, quando não infantil ou de imigranes irregulares.
Perto de Deus, sem dúvida, mas distantes do próximo e mais ainda daqueles que incomodam! Até que ponto isso é possível numa fé evangelicamente autêntica? Ou ainda, esse deus (com letra minúscula) não será um ídolo facilmente manipulável? Evidente que, embora em doses diferenciados, a mesma atitude se repete em todos os extratos e classes sociais. Chegamos ao extremo de “uma descrença objetiva”, ao lado de uma “piedade subjetiva”, diz com acerto o teólogo alemão Jurgen Moltmann (Teologia da esperança). Afirma ainda o mesmo autor: “A vida interior feita de relações diretas e incomunicáveis entre a existência e a transcendência, caminha pari e passo com o desprezo das coisas exteriores, consideradas absurdas, privadas de senso e iníquas”. A relação com Deus desvincula-se da relação com os outros, como se rezar o “Pai nosso” não implicasse um combate coletivo e fraterno pela busca do “pão nosso de cada dia”. De fato, se o Pai é “nosso”, o pão jamais poderá ser “meu”. A fé divorcia-se da vivência eclesial e da ação social.
A oração diante do Cristo Ressuscitado se interioriza numa forte sensação de louvar ao Deus eternamente presente e glorioso, a ponto de desinteressar-se por completo de qualquer compromisso com a realidade que nos cerca. Instala-se uma clara dicotomia entre a vivência da fé, às vezes eufórica e exagerada, por um lado, e, por outro, a ação pessoal, social ou política nos embates da existência, na família, no grupo de amigos, enfim, no cotidiano da vida. Ambas parecem linhas paralelas de uma ferrovia, ou seja, linhas que jamais se cruzam e menos ainda se interpelam. Pior ainda, a vida privada e a vida pública correm o risco de dissociar-se a tal ponto de uma sequer reconhecer a outra. O que eu sou em casa e na Igreja, digamos, é uma coisa; o que eu sou ou como vivo la fora, é outra. Dois tipos de comportamento fragmentados, não raro em contradição entre si. Quantas vezes o escândalo de um representante de alto escalão da política, dos negócios ou da religião, quanto escancarado pela mídia, revela essa dupla face da mesma pessoa!
Nas cartas de Paulo, particularmente na Primeira aos Coríntios, o apóstolo combate esse êxtase falso de uma expectativa imediata do Reino – próprio da Igreja primitiva – como se a segunda vida de Cristo estivesse às portas. Semelhante expectativa levava os cristãos a desinteressar-se das “coisas do mundo”, para refugiar-se numa atitude de fé estéril e descompromissada. Ao invés de uma preocupação pela transformação do mundo, prevalecia o seu abandono puro e simples. Por que fazer algo se o fim está proximo! Basta esperar o Senhor! Vem, Senhor Jesus! Se, por uma parte, é verdade que Cristo ressuscitou dos mortos e está vivo, diz Paulo, por outra, também é certo que nós permanecemos sujeitos às incongruências e contradições deste mundo, submetidos ao domínio do pecado e da morte. Experimentamos o “já” da ressureição de Jesus como antecipação da glória futura e, ao mesmo tempo, o “ainda não” que mantém o corpo e o espírito na expectativa do cumprimento da promessa expressa na vinda gloriosa. O apóstolo enfatiza uma diferença fundamental, muitas vezes pouco levada a sério. Enquanto Cristo passou pelo processo da cruz e da ressurreição, nós ainda vivemos sob o signo do sofrimento e da cruz. Não podemos abandonar sem mais a “carne do mundo” (Bruno Forte) onde se encontram tantos irmãos e irmãs crucificados. Parafraseando Paulo Freire, ninguém se salva sozinho, ninguém salva ninguém; todos nos salvamos juntos. Caminhamos nas trevas, à sombra da cruz, tendo na mão a chama da ressurreição do Messias, na fé e na esperança de nossa própria ressurreição e da instalação definitiva do Reino de Deus. Vale insistir, a promesa que nos impele à ação no mundo “já” se fez presente em Jesus morto e ressuscitado, mas “ainda não” se cumpriu em nós mesmos. Daí a exigência de uma fé que se desdobre em prática transformadora diante de uma sociedade que contradiz o plano de Deus.
Por isso é que a fé e a esperança conduzem ambas à prática da caridade. Enquanto estamos a caminho, não podemos separar “justos e injustos”, “fiéis e infiéis”, “puros e impuros”, “salvos e perdidos”, “Deus e o mundo” – como âmbitos absolutamente contrários e com fronteiras precisas. Não podemos cruzar os braços diante de uma sociedade fortemente marcada pelo individualismo e o egoísmo, o sofrimento e a morte. Fugir deste contexto é abandonar o mundo onde foi erguida a cruz de Cristo, no Calvário, e onde estão plantadas hoje as cruzes de milhões de pessoas, a imensa multidão dos “sem”: sem terra e sem trabalho, sem nome e sem endereço, sem pão e sem escola, sem direitos e sem pátria. Buscar o céu e o rosto de Deus sem passar pelo rosto desfigurado dos pobres e excluídos é o mesmo que tomar um falso atalho para a fé a partir da Boa Nova do Evangelho e de toda a Bíblia como Palavra de Deus. “Onde está teu irmão Abel?” – perguntará novamente o Senhor! E que responderemos? Não vale repetir a mesma desculpa de Caim: “por acaso sou eu o guarda de meu irmão!” Sim, na família cristã, somos todos responsáveis uns pelos outros, guardiães uns dos outros.
Alguns tipos de oração, de exercícios de piedade e de louvor e, por outro lado, algumas formas de comportamento dos participantes de certos movimentos religosos, surgidos nas últimas décadas, tendem a essa dicotomia. Do nosso lado estão os que “encontraram Jesus”; do lado de fora os que vivem nas trevas do erro e do pecado. Trata-se de um dualismo que remete ao famigerado conceito de maniqueísmo, segundo o qual o bem e o mal, o certo e o errado encontram-se em lados diametralmente opostos. Na prática de Jesus e nas cartas de Paulo, contudo, todos estamos a caminho, na tensão entre o pecado e a graça, a dor e a esperança, a danação e a salvação. Ninguém se encontra definitivamente salvo e ninguém definitamente condenado. Estamos todos sujeitos às pedras e espinhos da estrada, às relações conflitivas com os outros e ao ambiente histórico em que vivemos e nos movemos. E todos somos chamados, diária e simultaneamente, a uma resposta diante do apelo evangélico e à solidariedade com os pobres, os pecadores, os mais necessitados, os últimos, como não se cansa de lembrar o Papa Francisco. Como conclusão, resulta que fé e compromisso pastoral, social e político são indissociáveis.
Roma, Itália, 16 de novembro de 2013