Boa nova para os pobres
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Muito papel e tinta já foram gastos para discutir, se a Igreja deve ocupar-se apenas do “espiritual”, ou se também lhe cabe interessar-se pelas questões mais concretas, referentes à vida do homem neste mundo.
Não é meu propósito, nestas linhas, discorrer sobre esta controvérsia que, ao meu ver, está mal colocada: a Igreja de Cristo, neste mundo, é formada de pessoas e instituições concretas, histórica e socialmente situadas, com as quais ela exerce sua missão.
O papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho, 2013), aponta algumas questões, às quais a Igreja precisa dar especial atenção, se quiser cumprir bem a sua missão. Entre outras, destaca que a evangelização tem uma clara dimensão social e não pode contentar-se apenas com a realização de ritos religiosos, sem repercussão na vida social.
Da adesão à fé cristã, quando verdadeira, decorre um compromisso social amplo e a adoração de Deus implica necessariamente no reconhecimento da dignidade de todo ser humano, amado e querido por Deus, bem como no esforço em prol da fraternidade e da justiça. Reconhecer Deus como criador e origem última das criaturas, leva ao respeito por todas elas.
Até pode parecer novidade que o papa Francisco diga, de maneira tão explícita, que a evangelização possui uma dimensão social e o anúncio do Evangelho de Cristo tem inevitáveis implicações comunitárias. No entanto, Francisco retoma conceitos já consolidados no ensino social da Igreja, com a clareza e simplicidade que lhe são próprias, citando documentos de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, dando-lhes novos destaques.
De fato, nada é mais antigo e originário no Cristianismo do que os dois amores inseparáveis – a Deus e ao próximo. Desde os primórdios, os cristãos aprenderam que “a fé sem as obras é morta em si mesma”; e que as obras da fé incluem sempre a prática do amor fraterno, a atenção aos pobres, doentes e desvalidos, sem exclusão de ninguém. Paulo, ao se confrontar com os outros apóstolos, para verificar se a sua pregação estava em sintonia com a deles, recebeu apenas esta recomendação: que não descuidasse os pobres.
Não se trata apenas de levar assistência e socorro, sem dúvida indispensáveis para aliviar necessidades pontuais e imediatas dos pobres, mas de “ouvir o clamor dos pobres e socorrê-los,” de para promover a sua inclusão social. Nem é missão reservada apenas a algumas pessoas: é de todos os membros da Igreja, atuantes nas mais diversas áreas de suas competências profissionais e responsabilidades sociais. O Papa convida a ir além de alguns atos esporádicos de generosidade e a formar uma nova mentalidade, uma cultura, superando o excessivo individualismo para pensar e agir solidariamente, tendo sempre presente o horizonte da comunidade e da grande família humana (cf. n. 188s).
“Precisamos crescer em solidariedade”, ensina Francisco, também no que diz respeito às relações entre os povos, onde a exacerbada defesa dos direitos individuais, ou das vantagens dos povos mais ricos, passa por cima do direito mais elementar à vida digna de populações e nações inteiras, que continuam a viver na miséria e sem chances de sair dela. De maneira clara e corajosa, Francisco retoma o conceito da “destinação universal dos bens deste mundo” para todos os seus habitantes: “respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda e para toda a humanidade”.
Usando palavras de seu predecessor, Paulo VI (Octogesima adveniens, 23,1971), Francisco apela para os povos mais ricos, tocando numa questão melindrosa: ”é preciso repetir que os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros” (n. 190).
A opção preferencial da Igreja pelos pobres não tem motivação ideológica, nem implica na exclusão dos que não são pobres: ela tem sua origem e inspiração no exemplo e nas palavras do próprio Jesus e deverá ser traduzida em ações concretas de solidariedade para com os doentes, os pobres e todos os deserdados dos bens deste mundo; mas também na promoção da justiça social e no cuidado de todo ser humano despojado de sua dignidade. A Igreja, acaso, poderia deixar de fazer isso e de convidar todos a fazer o mesmo, como caminho para o bem comum e a paz?
A evangelização seria incompleta, se não tomasse em consideração a constante interpelação recíproca constante entre o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social (n. 181). Francisco adverte aqueles que, dentro ou fora da Igreja, pensam, deva a religião ficar reservada apenas aos espaços da vida privada: “ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre acontecimentos que interessam aos cidadãos” (n. 183).
Bem, e por qual motivo os católicos não fazem isso? Não é que falte quem já o faz; mas, é verdade, temos muito pela frente! Entre o “dever fazer” e o “fazer” vai uma grande distância. Nada é automático na condição humana, nem também na vida dos crentes em Deus; o Cristianismo apela, por princípio, à consciência e à liberdade humana; graça divina e autonomia do homem são dois pólos que precisam se encontrar.
A palavra do papa Francisco, dirigida aos membros da Igreja, longe de ser triunfalista, é um chamado à realidade e à atitude consciente; a “alegria do Evangelho” é um bem para a comunidade humana inteira, não podendo ficar retida no coração dos fiéis: ela é “boa nova” para todos. Para os pobres, em primeiro lugar.