O bem comum global ante a escassez de recursos

CELAM-MISEREOR *

Tradução: Adital

*Simpósio CELAM-Misereor
Cidade do Vaticano, 06 e 07 de março de 2009

Declaração

Como parte da reflexão sobre os processos globais de justiça e solidariedade e dentro de uma história de boa cooperação por vários anos, o CELAM (Conselho Episcopal Latinoamericano e do Caribe) e MISEREOR, da Alemanha (Obra Episcopal para o Desenvolvimento) realizaram o Simpósio com Bispos e expertos acerca do ‘bem comum global ante a escassez de recursos’. É parte de um caminho de vários eventos realizados, entre eles o realizado também na Cidade do Vaticano em 2007 como parte do Itinerário para a V Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano e do Caribe, em Aparecida, e se nutre dos trabalhos realizados pelo

IPCC, el IAASTD y el IPSRM (1).

No contexto atual de mudança climática, da crise financeira internacional e da limitação dos bens naturais, consideramos necessário ter um espaço de reflexão enquanto organizações de Igreja para colaborar com a sociedade a partir da fé. Preocupa-nos a velocidade das mudanças e a lentidão dos processos sociais frente a eles. Evidenciam-se vítimas e ameaças para as pessoas que lutam pela dignidade das/os filhas/os de Deus.

Analisamos diversas informações sobre a mudança climática, a crise alimentar, a situação da água, o avanço do desmatamento na Amazônia, as tendências para os agrocombustíveis, entre outras. Todos esses relatórios são de acesso público e de ampla divulgação.

O Documento Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, no No. 26 nos diz: “A interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum -ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição- se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo o gênero humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana”.

Nessa perspectiva, nos pronunciamos dirigindo-nos a governantes, legisladores, acadêmicos, líderes sociais, empresariais e ao povo.

Um olhar ao contexto

Diante do pano de fundo da globalização e do limite cada vez mais visível dos bens do planeta, bem como da grave crise do mercado desregulado, é necessário definir novamente o conceito de bem comum, considerando que as perspectivas nacionais somente incidem de forma insuficiente. No âmbito internacional, a pressão sobre os bens naturais aumenta intensamente e no futuro a segurança sobre o subministro de matérias primas e de alimentos determinará de forma essencial as relações bilaterais e multilaterais, colocando em sério risco a paz.

A limitação dos recursos naturais e sua distribuição atingem a justiça em suas diferentes dimensões: as possibilidades e o acesso aos recursos dentro dos países que possuem matérias primas; o intercâmbio entre os países que comercializam com as mesmas; o futuro das gerações. A isso, agrega-se que determinados bens naturais têm o caráter de bens públicos. O uso da biosfera, da atmosfera e das reservas de água doce é, em geral, realizado de maneira irracional. Observa-se também em vários países a privatização de bens públicos.

É preciso afirmar com clareza que um acesso à água ao alcance dos pobres é um direito humano, fora da lógica do mercado, o que deveria refletir-se nos sistemas de abastecimento.

A crise alimentar “caracteriza-se não tanto pela insuficiência de alimentos, mas pelas dificuldades para obtê-los e por fenômenos especulativos e, portanto, pela falta de um entrançado de instituições políticas e econômicas capazes de afrontar as necessidades e emergências” (SS. Bento XVI. 1º. de Janeiro de 2009, Mensagem pela Jornada pela Paz).

A atual crise do mercado financeiro nos mostra que a autoregulação dos mercados é uma ilusão que tem levado a um “beco sem saída” e que a visão cristã de que a economia deve servir ao ser humano e a seu bem estar tem ficado relegada.

A crise econômica global agora atinge países em vias de desenvolvimento mais do que aos países ricos. Os países latinoamericanos e outros estão sofrendo a redução das exportações e entradas, do aumento do desemprego, de preços mais baixos das matérias primas e do aumento da dívida pública. Existe um movimento para a reforma da Arquitetura Financeira Global como por exemplo a iniciativa do G-20; porém, os países pobres não podem participar.

Nas deliberações sobre a reforma da ordem econômica global, os interesses dos países em vias de desenvolvimento e de sua população empobrecida não têm prioridade.

Até agora as políticas nacionais e internacionais não têm podido dar respostas adequadas a esses grandes desafios. Praticamente não existem mecanismos globais com poder de controle legitimados democraticamente e com capacidade de negociar e prevalecer. Essa situação leva a que os interesses particulares de grupos econômicos e políticos compitam com os interesses de Estados Nacionais. Nesse cenário, as necessidades dos pobres e o bem comum global são deixados de lado.

Os pobres são as maiores vítimas da exploração ecologicamente desconsiderada das matérias primas, da corrupção, do aproveitamento abusivo da atmosfera e da água disponível, das escandalosas consequências resultantes de mercados financeiros colapsantes e da escassez crescente de bens.

Entramos em uma nova época, o que exige da Igreja e da sociedade um novo paradigma cultural como base de um modo de vida na linha de reconhecer o finito dos bens naturais.

O bem comum global

O bem comum não é a simples soma dos bens particulares de cada pessoa ou grupo social. A visão holística da Igreja sobre o bem comum se fundamenta na dignidade da pessoa humana que, criada à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26-27), é simultânea e indissoluvelmente pessoa e sociedade. Consiste no “conjunto daquelas condições sociais que permitem e favorecem aos seres humanos, às famílias e associações o avanço mais pleno e mais rápido de sua perfeição” (GS 74). Por esse motivo, constitui o sentido e a razão de ser mais profunda da comunidade política, das instituições sociais e, de modo particular, da autoridade civil.

É o fim e o critério de toda ação social e política, em todos os níveis: local, nacional e internacional.

Em nosso tempo, a interdependência crescente entre os povos obra de tal maneira que impede que cada nação e seu respectivo governo possa por si mesmo procurar o bem comum de seus habitantes.

Temos que tomar consciência de que a mudança climática, a crise de energia, a crise financeira, a escassez de alimentos, a diminuição dos recursos naturais etc. são desafios tão globais que devem ser assumidos por todos e, de modo especial, por aqueles países cuja responsabilidade é maior na geração das causas que ameaçam a vida humana e a integridade da criação.

O bem comum a custodiar não é isoladamente o bem de cada povo. Suas dimensões, cada vez mais universais, nos permitem falar do bem comum global. O planeta é a casa da família humana e de toda a criação, que temos que cuidar responsável e solidariamente entre todos. Leva ao bem estar das pessoas, especialmente as mais vulneráveis, considerando que estamos em um contexto de pobreza, desigualdade, exclusão social e que a criação está em risco.

O momento de atuar é agora ou será demasiado tarde para todos. Urgem respostas imediatas e não seguir a prática de adotar medidas isoladas e desarticuladas que somente apontam para manter ou restaurar o sistema atual.

É evidente que, com um modelo de desenvolvimento concebido unicamente como crescimento econômico não será possível alcançar a justiça no mundo. Não se deve seguir o exemplo das sociedades centradas no consumo egoísta e irresponsável. Os recursos do mundo simplesmente não serão suficientes. A crise nos chama a buscar novos padrões de desenvolvimento para o planeta tanto para o Norte quanto para o Sul.

É necessário avaliar o crescimento econômico a partir da ética do desenvolvimento. É a economia para o ser humano e não ao contrário, como diz Paulo VI na Populorum Progresio No. 20.

Tudo isso evidencia a necessidade de um novo consenso social global para uma nova convivência humana no e com o planeta, a uma corresponsabilidade Norte-Sul com vistas à distribuição equitativa dos bens em todo o mundo, considerando as atuais e futuras gerações. Hoje, o bem comum tem uma dimensão cada vez mais universal, implica em direitos e deveres. Nesse contexto, devemos aplicar o princípio do destino universal dos bens.

A Igreja é interpelada pelas dramáticas tendências da realidade. A partir da Doutrina Social da Igreja, podemos formular exigências éticas que devem ser observadas ao buscar soluções, promover uma teologia da criação e uma teologia da responsabilidade. É a hora de uma nova atitude da Igreja dentro de sua própria Missão, convocada à tarefa de buscar caminhos para uma nova ordem global, em colaboração com outros grupos e organizações. Os pobres e excluídos têm que ser também sujeitos e atores de uma nova ordem política, econômica, social, ecológica. No exercício da solidariedade e da subsidiaridade com autêntica voz profética, impõem-se uma mudança nos estilos de vida e modos de produção.

O comportamento da mineração ou de qualquer indústria extrativa que se mova somente pelo lucro, jamais se ocupará desses aspectos.

Dado que os governos são responsáveis por garantir o bem comum das pessoas, requer-se seu compromisso frente às necessidades de uma verdadeira regulação dos mercados e de políticas públicas centradas no bem comum global. Os Estados juntos devem procurar normas que protejam a biodiversidade, a água, o ar, a terra, o ambiente, os bosques, os glaciares.

A partir da opção preferencial pelos pobres, a Igreja está chamada a enfrentar esses desafios e analisar os déficits de justiça, orientação e cooperação que se observam em todas as partes. Em última instância, trata-se de que ela tome posição a partir de uma perspectiva social e ética da economia com respeito à sua definição, conteúdo de valores e configuração institucional.

Desafios éticos e linhas de ação

Se nos apresentam desafios em vários níveis: nas responsabilidades das pessoas, dos âmbitos nacionais, supranacionais e globais.

Quanto às pessoas, promover atitudes que afastem o consumismo e o desperdício de recursos naturais e levem a atitudes solidárias no uso responsável dos bens, dentro de um comportamento ético que valorize mais o ser do que o ter e que supere o mero afã de lucro ou benefício individual.

No âmbito dos Estados Nacionais, incrementar a eficiência no uso dois recursos naturais; promover políticas públicas que favoreçam o cuidado dos bens e a agricultura multifuncional, entendendo por isso não somente o trabalho da terra, mas todas as dimensões implicadas, tais como aspectos culturais, sociais, ecológicos e econômicos. Isso implica em políticas públicas que abarquem a integralidade da vida rural.

É necessário favorecer os mercados locais e regionais no intercâmbio com equidade, cuidando da segurança e soberania alimentar. Deve-se impulsionar o papel regulador dos governos frente às indústrias extrativas nacionais e transnacionais para procurar estudos sérios de impacto ambiental, consulta prévia às populações atingidas, na perspectiva do desenvolvimento humano integral. É imperativo o cuidado com a água, o ar, os bosques, os glaciares e a proteção da biodiversidade.

Requer-se garantir a plena vigência dos direitos humanos tanto os que têm a ver com o cuidado e sustentação da vida (água, alimentação, habitação) quanto os que têm a ver com a colaboração e participação na sociedade civil (direitos civis e políticos). É necessário fomentar o critério de uso eficiente, eficaz, equitativo, sustentável e suficiente dos recursos naturais, especialmente no consumo, valorizando com justiça e incentivando os serviços ambientais e socioculturais de camponeses, indígenas, afrodescendentes, ribeirinhos e diversas populações.

É necessário integrar no sistema educativo o novo paradigma cultural que reconhece o finito dos recursos naturais. Nessa linha, é muito importante o papel dos meios de comunicação social, que devem ser aliados em gerar a consciência da necessidade do cuidado do planeta.

As políticas públicas não devem se limitar a um enfoque meramente compensatório assistencialista, mas chegar a mudanças estruturais para combater as causas da pobreza. Requerem-se incentivos fiscais capazes de promover um desenvolvimento limpo, equitativo e sustentável.

Na Ordem Global é necessário promover um acordo internacional de redução de emissões não menor do que 50% até 2050. É imperioso incluir os custos ambientais nos processos econômicos e o reconhecimento dos serviços ambientais que por anos a América Latina e o Caribe, juntamente com outras regiões, vêm brindando ao mundo.

É necessário estabelecer um sistema transparente, equitativo e includente de transações econômicas dirigidas a reduzir as emissões, apoiar as populações empobrecidas a adaptar-se aos efeitos da mudança climática em condições dignas.

Deve-se definir uma ética nas relações de comércio internacional, o que implica na reforma fundamental de organizações multilaterais do comércio (OMC), das finanças (IFIs) e da justiça tributária.

Há que buscar que os delitos ecológicos sejam puníveis de sanção penal nos tribunais de direitos humanos. Não deve haver impunidade para os que provocam depredação, contaminação irreversível e morte de comunidades humanas.

É necessário levar em consideração as propostas resultantes das análises de organizações internacionais expertas tais como IPCC, IAASTD, IPSRM.

No contexto atual e frente às próximas décadas, é necessário estabelecer novos mecanismos de redução da dívida externa dos países empobrecidos.

A construção da paz mundial requer sistemas preventivos e de resolução de conflitos. Requerem-se incentivos para a redução do desmatamento, a transformação do esquema de energia, aumentando a eficiência energética de energias limpas, tais como a eólica e solar.

Nessa linha, Aparecida nos desafia a uma renovada pastoral social, “Assumindo com nova força esta opção pelos pobres, manifestamos que todo processo evangelizador implica na promoção humana e na autêntica libertação sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade” (DA 399, DI 3).

Assinam:

Cardeal Oscar Andrés Rodriguez Maradiaga, Presidente da Caritas Internationalis
Dom Raymundo Damasceno de Assis, Presidente do CELAM
Dom Geraldo Lyrio Rocha, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Dom Luiz Vieira, Vice- Presidente da CNBB
Dom Dimas Lima Barbosa, Secretario General da CNBB
Dom Ricardo Josef Weberberger, Comissão da Água e Meio Ambiente CNBB
Mons. Jorge Eduardo Lozano, Responsável pela Seção de Pastoral Social do CELAM
Mons. Álvaro Ramazzini, Bispo de San Marcos, Guatemala
Mons. Norbert Strotmann, Bispo de Chosica, Peru
Mons. Felipe Arizmendi Esquivel, Bispo de San Cristóbal de las Casas, México
Mons. Fernando Bargalló, Presidente do Secretariado Latinoamericano e do Caribe da Caritas (SELACC)
Mons. Matthias König, Membro da Comissão Episcopal para Misereor, Alemanha
Mons. José Sayer, Diretor Executivo de Misereor, Alemanha
P. Sidney Fones, Secretario Geral Adjunto do CELAM
P. Enrique Quiroga, Secretario Executivo do Departamento Justiça e Solidariedade do CELAM

Nota:

(1) IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change
IAASTD International Assessment of Agricultural Knowledge Science and Technology for Development
IPSRM International Panel for Sustainable Resource Management