Celebrando Mons. Romero: Homilia de 24 de março na capela da UCA
Jon Sobrino
Tradução: Adital
Monsenhor no Hospitalito, sozinho com Deus.
Na Catedral, com seu povo.
Em meio ao povo e em sua defesa até o fim.
Em muitos lugares está sendo celebrado o XXIX Aniversário do assassinato-martírio de Monsenhor Romero. Nós o recordamos na Capela da UCA (Universidad Centroamericana, em El Salvador). Pedimos-lhe que nos abençoe; que nos anime a ser uma universidade como ele queria e a converter-nos quando, por ação ou por omissão, não o somos. E lhe pedimos que professores, administrativos, trabalhadores/ras e alunos sempre recordem seu nome, o recordem e o honrem.
Para torná-lo presente entre nós, elegi duas leituras. O evangelho é o do Bom Pastor, pois a universidade, com tudo o que tem, conhecimentos e recursos, deve pastorear de maneira universitária o povo salvadorenho. Antes de qualquer outra coisa, deve alimentar as maiorias famintas de pão e de trabalho, de justiça e de verdade. E deve defendê-las dos mercenários, dos poderosos de todo tipo, que não as apascentam; mas, que, muitas vezes, as devoram, como denunciava o profeta Oséias. E nessa defesa, a universidade deve correr riscos, como o bom pastor. Quem nos recorda essa verdade são os nossos companheiros aqui enterrados.
A segunda leitura nos diz quem é esse bom pastor: Jesus de Nazaré. Em palavras belas e bem pensadas, diz-se que Ele “passou fazendo o bem, curando os oprimidos”. E agrega, em tom de confissão, o que não costumamos levar em consideração: “que Deus estava com Ele”.
Agora, queremos recordar Monsenhor Romero bom pastor a partir de três coisas muito próprias dele: o Hospitalito, a Catedral e seu caminhar com o povo, defendendo-o até o fim.
1. No Hospitalito, sozinho com Deus
Sabe-se que, após sua nomeação como arcebispo, a oligarquia quis atraí-lo para seu lado e lhe ofereceu um palácio episcopal com as habituais comodidades mundanas. Porém, Mons. Romero não aceitou e foi viver em uma modesta casa junto ao Hospital ‘La Divina Providencia’. Lá, muitas vezes, recebeu à noite pessoas de todo tipo. Lá, aos sábados, preparava suas homilias dominicais. E lá, como Jesus junto ao lago ou no horto, orava ao Deus que vê no escondido. A Ir. Teresa contava que altas horas da madrugada via luz na casa de Monsenhor e lhe levava um suco de laranja. O encontrava rezando.
No Hospitalito, em tempos de graves riscos, Mons. Romero vivia sozinho e sem segurança. As pessoas mais próximas eram mulheres, enfermas de câncer incurável, pobres todas elas, com a angústia permanente de não saber o que seria de seus filhos depois que morressem. Monsenhor -tão indiferente às honras mundanas- confessou que teria gostado de ganhar o Prêmio Nobel da Paz de 1978 para, com o dinheiro do prêmio, aliviar a sorte das mulheres enfermas.
Somente Deus que vê no escondido sabe bem quem era o Monsenhor do Hospitalito e o que significava Deus para ele. Porém, algumas coisas podemos recordar. Pouco antes de sua morte, nos momentos mais difíceis do povo salvadorenho, Mons. Romero lhes falou de “Deus”:
“Nenhum homem se conhece enquanto não se encontrou com Deus. Quem me dera, queridos irmãos, que o fruto dessa predicação fosse que nos encontrássemos com Deus” (Homilia de 10 de fevereiro de 1989).
E a essas palavras mais reflexivas, agregou outras mais entranháveis. Com humildade dizia: “meu desejo mais íntimo é que eu não seja um empecilho no diálogo de vocês com Deus”. E, com entusiasmo, acrescentou: “me alegra muito quando tem gente simples que encontra em minhas palavras um veículo para aproximar-se de Deus” (Homilia de 27 de janeiro de 1980). E com Deus consolava as pessoas: “Deus vai com nossa história. Deus não nos abandonou” (Homilia 9 de dezembro de 1979).
A todos, também a UCA e à Igreja, Ele nos pergunta e nos convida a “estar sozinhos com Deus”. E aos que não mencionam esse nome, pergunta-lhes e os convida a estar socinhos, sem defesas e em entrega total, com aquele bom que vejam como último: a compaixão, a justiça, a verdade. “Sozinhos”. Sem poder ir além.
2. Na Catedral com seu povo
O Monsenhor da Catedral é mais conhecido. É o Monsenhor das homilias, dos pobres e das vítimas, dos horrores da repressão e da esperança de justiça. É o Deus das organizações populares, dos sacerdotes perseguidos e assassinados, dos inúmeros mártires, sem que Monsenhor deixasse a nenhum deles e delas sem nome. É o Deus do povo salvadorenho. Aqueles que tivemos a sorte de escutá-lo, o recordamos muito bem. Vamos citar algumas palavras suas; porém, talvez o mais importante é saber como preparava suas homilias -profunda lição- para a Igreja, para a UCA, para os meios de comunicação, e para todas as instituições e organismos que querem servir ao povo. Na véspera de seu assassinato, disse Monsenhor:
“Peço ao Senhor, durante toda a semana, enquanto vou recolhendo o clamor do povo e a dor de tanto crime, a ignomínia de tanta violência, que me dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao arrependimento” (Homilia de 23 de março de 1980)
Daí surgia a denúncia e a profecia, e por surgir da dor e do clamor do povo, iam além de declarações éticas ou da doutrina social:
“Eu denuncio, sobretudo, a absolutização da riqueza. Este é o grande mal de El Salvador: a riqueza, a propriedade privada como um absoluto intocável. E ai daquele que toque nessa cerca de alta tensão! Se queima!”. “Vivemos em uma falsa ordem baseada na repressão e no medo”. “Roubar tornou-se comum. E aquele que não rouba é chamado de tonto”. “Brinca-se com o povo; brinca-se com as votações; brinca-se com a dignidade das pessoas”. “Estamos em um mundo de mentiras, onde ninguém acredita em nada”. E como um Amós ou um Miquéias, dizia: “isso é o império do inferno”. A exigência é como ser Igreja e ser universidade de ciência e de profecia.
Nos últimos meses, Monsenhor Romero foi, todavia, mais duro -se é que se pode falar assim-, ao dizer a verdade. E a razão era a compaixão: a verdade estava a favor do povo, que muitas vezes somente tinha a verdade a seu favor. Por isso, a denúncia profética subiu de tom. Porém, é importante recordar também umas palavras cheias de honradez e muito próprias de Monsenhor, que, tomara, todos as tenhamos presentes: “temos que começar em casa”.
“Quem denuncia deve estar disposto a ser denunciado e se a Igreja denuncia as injustiças, está disposta também a escutar denúncias contra si e está obrigada a converter-se… Os pobres são o grito constante que denuncia não somente a injustiça social, mas também a pouca generosidade de nossa própria Igreja” (Homilia de 17 de fevereiro de 1980).
3. No meio do povo e em sua defesa até o fim
Monsenhor manteve-se firme na compaixão e na denúncia, sem falcatruas. Sua compaixão e sua profecia não foram ‘flor de um dia’, nem foram palavras, política e eclesiasticamente, corretas. Na sociedade não encontrou facilidades; porém, tampouco encontrou facilidades na Igreja enquanto instituição hierárquica; às vezes, muito pelo contrário. Manteve-se firme e até o último momento defendeu as vítimas, mesmo sabendo que ele poderia ser a próxima. E assim foi.
Monsenhor Romero levou a serio as palavras de Puebla. Deus “ama os pobres e os defende”. A primeira o levou a desgastar-se em uma pastoral a favor da justiça, da esperança e da vida dos pobres. A segunda, a enfrentar-se com quem os oprimiam e reprimiam. Colocou a sua Igreja nessa direção de defesa e enfrentamento, de modo que, sem intenções idealistas, chegou a ser uma “Igreja dos pobres”. Isso significou riscos e confrontos. “Por defender o pobre, a Igreja entrou em grave conflito com os poderosos das oligarquias econômicas” (Discurso de Lovaina, 2 de fevereiro de 1980). Já antes havia constatado as consequências e emitiu um julgamento notoriamente evangélico, que nunca se emite: “Seria triste que em uma pátria onde estão assassinando tão horrorosamente não contáramos também sacerdotes entre as vítimas. Estes, são o testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas do povo” (Homilia de 24 de junho de 1979).
Atualmente, em um mundo mal chamado de globalização e que, na realidade, vive em transe de cruz, pretende eliminar arestas ao horror da realidade e silencia milhões de crucificados -no Iraque, no Congo, em Gaza, no Haiti-, tornar Deus presente na história é seguir Jesus carregando a cruz. Não com uma cruz abstrata e sem história; mas concreta, salvadorenha. “Cristo é Deus majestoso que se faz homem humilde até a morte dos escravos em uma cruz e vive com os pobres… assim deve ser nossa fé cristã” (Homilia de 17 de fevereiro de 1980). Monsenhor o intuiu desde o início. Em Aguilares, no dia 19 de junho de 1977, começou a homilia com estas palavras: “minha responsabilidade é ir recolhendo atropelos e cadáveres”. Palavras para a UCA, para a Igreja e para todos.
Monsenhor manteve a defesa de seu povo até o fim e, com isso, manteve a esperança. Dois eram seus pilares, como intuiu Ignacio Ellacuría: Deus e o próprio povo. Sem nenhuma rotina, nas horas mais trágicas de El Salvador, não se cansou de repetir o Emanuel. “Deus vai com nossa história. Deus não nos abandonou. Nenhum cristão deve sentir-se sozinho em seu caminhar; nenhuma família tem que se sentir desamparada; nenhum povo deve ser pessimista, mesmo em meio às crises que parecem mais insolúveis”. É o “consolai, consolai o meu povo”, de Isaías. E a esse povo deu-lhe dignidade. “Vocês são o divino transpassado”, disse em Aguilares a uns camponeses aterrorizados no dia em que foi celebrar a eucaristia quando os soldados, um mês depois em que o povoado havia sido invadido, ocupado e abandonado à sua sorte. Monsenhor dizia: “sobre estas ruínas brilhará a glória do Senhor”.
As ameaças iam aumentando. Em sua última homilia, confessou: “Esta semana me chegou um aviso de que estou na lista dos que serão eliminados na próxima semana”. E automaticamente, como se se houvesse convertido em segunda natureza, Monsenhor pôs sua morte em relação à salvação do povo: “que meu sangue seja semente de liberdade e sinal de que a esperança logo será uma realidade”.
E na relação com o povo, em um supremo esforço para impedir maiores atrocidades, pronunciou as palavras finais de sua homilia, fato insuperável na história do país, da Igreja e de qualquer lugar onde haja um rastro de humanidade: “em nome de Deus e em nome desse sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, suplico-lhes, rogo-lhes, ordeno-lhes em nome de Deus: parem com a repressão” (23 de março de 1980).
Nunca antes se havia escutado palavras semelhantes; e nunca mais voltaram a ser escutadas. Foram acolhidas com um estrondoso aplauso, nunca antes escutado, e que nunca mais voltou a ser escutado:
Com a morte de Monsenhor, sua palavra não morreu. Poucos dias depois de seu assassinato, em uma missa celebrada na UCA, o Padre Ellacuría disse: “Com Mons. Romero, Deus passou por El Salvador”. Muitas vezes repetimos essas palavras e hoje voltamos a perguntar-nos: é verdade? Sim, em muitos lugares. Basta recordar algumas coisas desses dias.
No dia 2 de março, Noam Chomsky, proeminente pensador estadunidense, lutador por causas nobres, muitas delas “perdidas”; acossado de muitas formas pelos poderes estabelecidos, acaba de completar 80 anos. O diário El País o entrevistou sobre temas conhecidos profissionalmente pelo autor: a situação da política internacional, os meios, internet… Porém, rompendo a lógica da profissão, a entrevista termina com uma pergunta pessoal: “Em sua idade, o que o faz continuar lutando?”. E ele respondeu:
“Imagens como essa [Chomsky indica um quadro pendurado em seu escritório, no qual se vê o anjo exterminador junto ao arcebispo Romero e aos seis intelectuais jesuítas assassinados em El Salvador nos anos 80 pelos esquadrões da morte]. Um de meus fracassos é que nenhum estadunidense saiba o que significa esse quadro”.
No dia 15 de março, algo novo aconteceu em El Salvador. O partido Arena, que nunca havia pronunciado oficialmente o nome de Monsenhor Romero -penso que por medo e por uma espécie de insuperável paralisia fonética-, perdeu as eleições. Mas, o vencedor, presidente eleito, Mauricio Funes, sim, o pronunciou. Analistas existem e existirão que julguem sobre convicções e intenções. Porém, remeter-se a Mons. Romero nesse momento e apresentá-lo como o mais entranhável que produziu e possui El Salvador, indica que Mons. Romero continua vivo.
Na vigília do dia 21 de março, durante a marcha e diante da catedral, muitos salvadorenhos/as sentiram uma vez mais a presença de Monsenhor. Com sentido humano e cristão -e com estranho sentido teológico-, não expressaram essa presença, pelo menos no fundamental, porque tivessem agora em suas mãos “mais poder”; porém, a expressaram com um sentimento de dignidade, esperança e alegria. Com Monsenhor podiam continuar trabalhando e caminhando. E celebrando a vida.
[No dia 26 de março, por primeira vez na história do país se instaurou um tribunal de justiça restaurativa para que, após desentender-se de tanto crime, por vileza ou pela lei de anistia, o Estado reconheça sua culpa e peça perdão; para que as vítimas recuperem dignidade; e para que depois de muitos anos sejam dados passos de reconciliação. Monsenhor Romero passava por El Salvador nos esforços denodados de muitos profissionais para a instauração do tribunal; na palavra das testemunhas, dos familiares das vítimas e, às vezes, das próprias vítimas; na dignidade, no alívio, na mão estendida que essas palavras expressavam].
Terminamos por onde começamos. Estamos na Capela da UCA. Convido-os a tornar realidade o compromisso assumido pelo padre Ellacuría quando, diante de Monsenhor, em 1985, recebeu o Doutorado Honoris Causa outorgado pela UCA.
1. Uma autêntica inserção na realidade nacional lacerada, quase ferida mortalmente, sacudida hoje por dez assassinatos a cada dia, sem ceder à tentação de distanciar-nos dela, mas como algo que traz benefício para a excelência acadêmica.
2. Não cair na neutralidade falaz e concretizar o bem comum a partir do bem das maiorias pobres e oprimidas, das vítimas: isto é, fazer uma opção livre pelos pobres deste país e manter-nos firmes nela.
3. Após a guerra, propiciar e defender de todas as formas possíveis uma paz verdadeira, os direitos humanos e a reconciliação real; frear o sangramento do país e trabalhar para que não sejam necessárias as migrações desumanas.
4. Não desistir da esperança de construir um futuro melhor, mais humano e humanizado. Especialmente, devolver palavra, consolo, dignidade e reparação às vítimas. E deixar-nos salvar por elas.
5. Que não se esmoreça, mas que se robusteça a inspiração cristã que movia todo o atuar de Mons. Romero. O Monsenhor que vivia da fé em Jesus nos move a dar a vida pelos que sofrem, tal como lemos no evangelho.
Peçamos a Deus que esta Universidade, com humildade e com decisão, com convicção e com alegria, seja fiel seguidora de Monsenhor Romero