Zildo Rocha: Hélder Câmara, o Dom
Para Zildo Rocha, a manifestação natural e espontânea de respeito às consciências e às decisões foi uma das mais preciosas lições do ministério de Dom Hélder Câmara. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, ele relata detalhes sobre a personalidade e sobre o legado de Dom Hélder para a Igreja.
O pernambucano Zildo Barbosa Rocha teve o privilégio de conviver durante alguns anos com Dom Hélder Câmara e conta, na entrevista que segue, o que guarda de mais significativo dessa experiência. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, ele relata detalhes sobre a personalidade e sobre o legado de Dom Hélder para a Igreja. Zildo Rocha recorda que era constante a preocupação de Dom Hélder com a miséria que atinge dois terços da população do globo, o que considerava “uma tremenda afronta ao Criador e Pai”. “Sabia e não perdia a ocasião de salientar que a ideologia dos Direitos Humanos quando se torna leis e estatutos, se constitui, sem dúvida, em meio de eficácia para a transformação de situações de injustiça”, acrescenta.
Zildo Barbosa Rocha estudou no Seminário de Olinda. É licenciado em Filosofia e Teologia, pela Universidade Gregoriana de Roma, onde foi ordenado sacerdote em 1958. Exerceu durante 12 anos o ministério presbiteral quando, entre outras, desempenhou as funções de reitor do Seminário Regional do Nordeste e de diretor do Instituto de Teologia do Recife – ITER. A partir de 1970, voltou à vida civil e ingressou no serviço público, onde exerceu cargos de chefia e de direção na Sudene e na Secretaria de Finanças do Estado de Pernambuco. É casado e pai de três filhos. Aposentou-se em 1990 e, em 1991/1992, passou um ano e meio na Inglaterra, onde fez, no Missionary Institute London-MIL um ano sabático de atualização teológica, nas áreas de Eclesiologia e Cristologia. Foi coordenador do Centro Dom Hélder Câmara – CENDHEC, onde, atualmente, atua no projeto de edição de suas Obras Completas. É autor de Hélder, o Dom (Petrópolis: Vozes, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor foi um das pessoas que acompanhou Dom Hélder. O que guarda de mais significativo da convivência com ele?
Zildo Rocha – Minha convivência com Dom Hélder se deu, basicamente, em dois períodos: de 1964 a 1970 e de 1990 a 1999, ou seja, nos seis primeiros e nos nove últimos anos de sua permanência entre nós no Recife. No primeiro período (64-70), essa convivência foi mais de natureza institucional. Encontrávamo-nos, quase sempre, para tratar de assuntos ligados à Arquidiocese, particularmente ao Seminário Regional de que eu fui de 65 a 69, sucessivamente, vice-reitor e reitor, e ao Instituto de Teologia, de que fui diretor em 68 e 69. No segundo período (90-99), ele já era arcebispo emérito e eu funcionário aposentado da Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco. Reencontrei-o, depois de uma longa história, que não cabe relatar aqui, quando ele já sentia o peso da idade e ensaiava o seu grande final, na campanha “Ano dois mil sem miséria”.
Ouvia-o, então, repetir, à exaustão, seu sonho de que a humanidade iniciasse o novo milênio sem a mancha negra da miséria “insulto e ofensa ao Criador e Pai”. Participei assim, como coordenador do Centro Dom Hélder Câmara – CENDHEC, do planejamento, lançamento e eventos iniciais daquela campanha, que logo depois foi secundada pela Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, lançada nacionalmente pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Posso dizer, também, com alegria, que o acompanhei, de perto, nos anos cinzentos em que a velhice, a dor de ver migrarem para longe suas “utopias peregrinas” e o abatimento, nunca consentido, por ver seu trabalho na Arquidiocese incompreendido e desmontado, o fizeram passar “à terceira margem do rio” ou a entrar na canoinha de silêncio e contemplação em que passou seus últimos anos.
Agora, respondendo à sua pergunta, poderia repetir o que escrevi no pósfacio de um livro que organizei sobre Dom Hélder, intitulado “Hélder, o Dom”: “De todas as lembranças de minha convivência com Dom Hélder, a que guardo com maior carinho na memória do coração é a palavra que me disse, quando fui comunicar-lhe a decisão de ‘deixar a batina’, como então se dizia. Ele me disse: ‘A confiança que tenho em você é tanta, que nem precisa dizer-me as razões que o levaram a tomar tal decisão’”.
Aquelas palavras caíram sobre mim como um bálsamo, num momento de grande tensão e angústia. Mas seu real significado eu só vim descobrir depois, quando ouvi de outro colega, que passou por situação semelhante, o depoimento de atitude idêntica, por parte do Dom. Ficou, então, claro para mim que o que me dissera naquela ocasião, antes de ser uma declaração generosa sobre a qualidade de nosso relacionamento, era, antes, a manifestação natural e espontânea de seu respeito às consciências e às suas decisões. E esta foi para mim uma das mais preciosas lições de seu ministério.
IHU On-Line – Em que sentido a vida de Dom Hélder reflete a essência do Evangelho?
Zildo Rocha – No texto a que há pouco me referi, resumi o que me parece o essencial da vida religiosa de Dom Hélder e o legado espiritual que deixou às futuras gerações. Dom Hélder era, antes de tudo, um homem religioso. Com razão foi escolhido em pesquisas feitas no Brasil, na virada do milênio, como “o religioso do século”. Sua religiosidade consistia basicamente em levar a sério e viver em profundidade algumas verdades, simples e basilares, do credo cristão:
– Deus é Criador e Pai;
– Jesus é o primogênito entre os irmãos;
– Maria é a mãe de Jesus e nossa mãe;
– A humanidade é toda ela uma grande família, da qual todos, sem exceção, fazemos parte;
– A imensa família humana se estende e complementa noutra, dos espíritos angélicos, que lhe oferece companhia fraterna, ajuda e proteção;
– O ato central de encontro da família humana e angélica com o Criador e Pai é a Santa Missa, compreendida não como o ritual mágico de uma seita particular, mas como ato cósmico e universal em que o Homem Deus Jesus Cristo, Sacerdote da Criação, recapitula e consuma em si todas as coisas, levando-as, no Espírito, de volta para o Pai.
É impossível compreender a vida de Dom Hélder fora desse credo referencial básico. Da experiência do Criador e Pai, ele extraiu uma intimidade de amor e submissão a Deus e uma quase espontânea paixão pelo Universo que o enchiam de confiança e de otimismo: uma crença no projeto da criação e no progresso humano; um encantamento pela Natureza, uma ternura pelas plantas e pelos animais, com quem, embora homem visceralmente urbano, ele se comunicava amiúde, nas asas da imaginação e da contemplação, como disso dão prova os poemas-meditações que rascunhava ao longo de seus dias e passava à secretária, e em suas vigílias; e toda a sua ação pastoral estava voltada para a realização da fraternidade entre os homens.
Dom Hélder transpirava essas verdades e as irradiava à sua volta nos mais comezinhos gestos do dia-a-dia: na maneira como tratava quem quer que dele se aproximasse; quando apontava para o céu ao ser chamado de senhor; quando, em meio a conversas as mais informais, saudava com um gesto de carinho a imagem de Maria posta sobre um móvel, ou afixada numa parede; quando pedia ajuda, ou simplesmente expunha a seu anjo da guarda, a quem carinhosamente chamava de José, as dificuldades em que se encontrava; ou ainda quando na Missa tomava nas mãos rindo ou, às vezes, chorando, o pão e o vinho, como se visse Jesus ali, encoberto sob aquelas frágeis e humildes espécies.Tudo o mais, em sua vida, parece decorrer da experiência profunda dessas simples e essenciais verdades, vividas por ele, de maneira intensa.
IHU On-Line – Qual a contribuição de Dom Hélder na luta em prol dos Direitos Humanos e do resgate da cidadania brasileira?
Zildo Rocha – A toda hora, em sua ação pastoral e em seus escritos (cartas, discursos e poemas-meditação), Dom Hélder se reportava ao homem, ao humanismo, ao desenvolvimento integral (“do homem todo e de todos os homens”), aos valores humanos, ao desrespeito frequente dos direitos fundamentais da pessoa, gerando situações de grande e mesmo de extrema injustiça. Era-lhe constante a preocupação com a miséria que atinge dois terços da população do globo, que considerava “uma tremenda afronta ao Criador e Pai”. Sabia e não perdia a ocasião de salientar que a ideologia dos Direitos Humanos, quando se torna leis e estatutos, se constitui, sem dúvida, em meio de eficácia para a transformação de situações de injustiça.
Mas não lhe passava despercebido que tal ideologia, gerada no âmbito do Estado Liberal, se volta bem mais para a salvaguarda dos direitos dos indivíduos, sendo facilmente manipulável pelos interesses das classes dominantes e, não raro, usados mais como entrave do que como garantia e preservação dos interesses da coletividade. E sabia, também e, mais ainda, que tal ideologia, para ser efetivamente usada como instrumento de transformação, precisa ser acionada por uma energia e uma força que, em sua visão e concepção cristãs, se situam para além das forças puramente naturais e necessitam do apoio da fé e da graça divina.
Como diz em um de seus discursos, os Direitos Humanos, antes de serem “um presente dos ricos ou dos governos para os segmentos pobres das populações, são uma consequência da Criação de Deus e, por isso, uma doação divina. A melhor maneira, portanto, de alguém guardar e defender seus direitos é a de assumir-se como criatura humana, filho ou filha de Deus”.
IHU On-Line – De que maneira Dom Hélder Câmara marcou os rumos da Igreja no Brasil?
Zildo Rocha – São inegáveis os frutos da ação de Dom Hélder na Igreja do Brasil e mesmo em algumas partes do mundo. Sem querer dar a impressão de estar fazendo propaganda do livro que, em 1999, me coube organizar para festejar os seus noventa anos, acho que ali se encontra uma boa resposta à pergunta sobre quem foi Dom Hélder e qual a sua contribuição à Igreja do Brasil. A importância da ação de Dom Hélder transparece, ali, no depoimento de vinte e cinco personalidades do Brasil e do Exterior, onde é apontado, de maneira viva e pessoal, como Amigo de fé, Colega, Irmão; Modelo de bispo do Vaticano II; Voz profética dentro da Igreja, e Profeta para o mundo.
Acho que a maneira como o Dom se faz ainda hoje presente entre nós é através da imensa obra escrita que nos legou, particularmente nas cartas que escreveu a seus colaboradores, a quem chamava de Família Mecejanense. São, ao todo, cerca de duas mil e duzentas cartas, escritas, ao longo de vinte anos. No próximo dia 14 de abril, a Companhia Editora de Pernambuco – CEPE estará lançando seiscentas dessas cartas, em dois volumes de três tomos cada um. O primeiro volume contém as Cartas Conciliares, assim chamadas porque escritas em Roma, durante as quatro Sessões do Concílio Vaticano II. O segundo, das Cartas Interconciliares, contém as cartas escritas, no Recife, entre as três últimas Sessões do Concílio (11 de abril de 1964 a 01 de setembro de 1965) aos seus ex-colaboradores do Rio de Janeiro e novos colaboradores de Olinda e Recife. Tive o privilégio de preparar para a publicação, com a ajuda de um pequeno grupo, este volume das Cartas Interconciliares e posso assegurar-lhe que se trata de um documento ímpar da história da espiritualidade católica. Nelas, um cristão autêntico, um grande bispo, um dos Pais da Igreja latino-americana, aceita o desafio de despir-se espiritualmente diante de Deus e de sua Igreja familiar e doméstica, diariamente ou quase, confessando e narrando, com simplicidade e transparência, a “história de sua alma” e as vicissitudes de seu dia-a-dia.
Tenho insistido em afirmar, junto ao Instituto Dom Hélder Câmara, que a tarefa que lhe incumbe prioritariamente, agora que nos falta a presença física do profeta, é a de publicar e divulgar, o quanto antes, sua obra escrita que, além da maravilhosa correspondência a que me referi, consta, ainda, de centenas de discursos, abordando temas de grande atualidade, e milhares de pequenos poemas – meditação. Tenho, mais que a esperança, a certeza de que o Dom continuará a marcar a sua presença entre as futuras gerações, através de sua obra escrita e da irradiação do seu testemunho.
IHU On-Line – Dom Hélder dizia: “Sempre que procura defender os sem-vez e os sem-voz, a Igreja é acusada de fazer política”. Em que sentido o senhor vê nas ações de Dom Hélder um exemplo para a ação da Igreja na sociedade?
Zildo Rocha – Dom Hélder era um homem de equipe. Aprendeu com a Ação Católica que ajudou a criar ou, pelo menos, a implantar no Brasil, sob o modelo da Ação Católica Especializada e segundo o método do Ver, Julgar e Agir. Acreditava no diálogo e considerava a autoridade um serviço e não um poder. Tinha profundo respeito por seus colaboradores e mais de uma vez o vi rasgar textos que preparara porque o seu “presbitério alargado” (vigários gerais, padres e alguns leigos) não o considerara convincente ou oportuno. Tinha um verdadeiro amor preferencial pelos pobres. Não por demagogia, como gostavam de repetir seus adversários, mas para sentir-se mais verdadeiro consigo mesmo, mais próximo desses irmãos frágeis e esquecidos, e mais fiel àquele de quem procedia todo o seu poder e autoridade e que não tinha onde reclinar a cabeça. A leitura de suas cartas ajudará, de certo, a perceber como entendia a sua função de bispo e a queria a serviço de seus irmãos nordestinos, martirizados pelo subdesenvolvimento, pela miséria e pela fome. Para ele, como para São João, o amor de Deus e o amor do próximo é um só e mesmo amor. E isso, de novo, não por caudilhismo ou demagogia, mas como fruto de uma ação que nascia da oração, da Vigília e da Santa Missa, pontos altos de seus dias.
maria vicencia tenorio alves
abr 11, 2009 @ 18:59:20
Estes escritos sobre o profeta dos pobres, a luz dos oprimidos, são um legado para todos nós.
Darialva da G.Linge
ago 18, 2009 @ 23:44:36
Preciso do Credo,escrito por D.Helder Câmara