José de Broucker : Dom Hélder Câmara : místico, fraternal, servidor fiel
Patricia Fachin
Jornalista, o francês José de Broucker foi amigo de Dom Hélder Câmara por três décadas. Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele relembra o tempo que conviveu com o arcebispo de Recife e revela admiração profunda pelo brasileiro de ideias liberais que ajudou a construir uma Igreja diferente. Numa fórmula breve, Broucker define o que qualifica como a complexidade paradoxal de Dom Hélder: “três pessoas em um só homem : homem de Deus, homem do mundo e homem da Igreja”.
Ao lembrar do amigo, ele diz que “Dom Hélder despertou numerosos engajamentos por um mundo mais juto e mais humano”. Neste ano em que comemoramos seu centenário de vida, “ele ainda está mais eloquente em seus escritos”. Sua mensagem ainda está viva e ‘a visão e os engajamentos que ele trabalhava para promover são vividos hoje por quantidades de organizações de sociedades civis em um número muito grande de países, inclusive na América Latina e no Brasil”. Seus escritos, continua, “dos quais muitos ainda estão para ser publicados, constituem uma herança extremamente preciosa para as gerações atuais e futuras”.
Biógrafo de Dom Hélder Câmara, José de Broucker escreveu diversas obras, entre as quais destacamos As noites de um profeta. Dom Hélder Câmara no Concílio do Vaticano II (São Paulo: Paulus, 2008). O autor é presidente da Associação Dom Hélder – Memórias e Atualidade, e diretor das Informações Católicas Internacionais no Tempo do Concílio.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – O senhor conviveu com Dom Hélder aproximadamente 30 anos. A partir dessa convivência, como descreve a personalidade humana e cristã de Dom Hélder Câmara?
José de Broucker – Tenho o hábito de expressar em uma fórmula a complexidade seguidamente paradoxal de Dom Hélder: três pessoas em um só homem: homem de Deus, homem do mundo e homem da Igreja. Por assim dizer: místico, fraternal, servidor fiel.
IHU On-Line – Como a trajetória de Dom Hélder nos ensina e repensar a Páscoa hoje? O que a mística desse momento revela sobre o espírito de Dom Hélder Câmara?
José de Broucker – A invencível e comunicativa esperança da qual Dom Hélder testemunhou em todas as circunstâncias não me parece sem relação com sua fé na ressurreição do Senhor: “Quanto mais negra é a noite, mais brilhante será a aurora.” Nem sem relação com sua atenção privilegiada aos pobres: “Não cabe aos pobres compartilhar da minha esperança, mas a mim de compartilhar da esperança dos pobres.”
IHU On-Line – Em que sentido as ideias liberais e libertadoras de Dom Hélder Câmara podem servir como fonte de energia para novas ações na sociedade, considerando também esse momento de crise (capitalista, institucional, de valores) que vivemos?
José de Broucker – Durante a sua vida, por todos os lugares onde passava e falava, Dom Hélder despertou numerosos engajamentos por um mundo mais justo e mais humano. O que ele chamava de “minorias abrahâmicas” que exercem “pressões morais libertadoras” sobre as estruturas de poder estão cada vez mais presentes e ativas. Hoje, Dom Hélder não está mais aqui. Mas ele está ainda mais eloquente em seus escritos do que em suas conferências. Aos atores sociais que são tentados pelo desânimo diante dos desafios da história, recomendo a leitura de suas Cartas Circulares conciliares e Interconciliares, de suas Meditações do Padre José, de suas alocuções radiofônicas. São inesgotáveis reservatórios de energias renováveis!
IHU On-Line – O senhor conheceu Dom Hélder na cobertura do Concílio Vaticano II. O que motivou a amizade entre vocês? Pode nos contar um pouco sobre os elos que os uniram durante três décadas?
José de Broucker – Meu primeiro encontro prolongado com Dom Hélder data de 1968, quando fui a Recife para realizar uma pesquisa-retrato do “arcebispo das favelas” a pedido de um editor parisiense (La violence d’un pacifique) [A violência de um pacífico]. Este encontro me fascinou, mas não esgotou a minha curiosidade de jornalista e de cristão: quarenta anos mais tarde, eu a persigo de todas as formas e maneiras. Também colaborei com a edição francesa de vários de seus livros, desde os anos 70. De sua parte, Dom Hélder me concedeu a sua confiança e me pediu para ser, de alguma forma, uma “antena” na França, notadamente para preparar e acompanhar suas viagens: eu era, de certa forma, com minha mulher e meus filhos, uma modesta “peça trazida” da “Família Mecejanense”.
IHU On-Line – Qual a principal contribuição de Dom Hélder para o Concílio Vaticano II?
José de Broucker – Como observou P. Congar, Dom Hélder tinha uma qualidade “tão rara em Roma”: uma visão. Uma visão do mundo – que não é somente europeu e rico, e uma visão da Igreja – servil e pobre, colegial, participativa, ecumênica no sentido mais amplo do termo. Esta visão estereoscópica, ele soube dividir, de minoria em minoria episcopal, até que ela fosse, em seus pontos mais importantes, a da maioria. Uma outra contribuição foi a de despertar e entreter um diálogo entre a assembleia conciliar e a opinião pública, pelo número de vezes que ele falou em público fora dos muros da Basílica de São Pedro.
IHU On-Line – De que maneira o pensamento de Dom Hélder permanece vivo ainda hoje? Que heranças o sacerdote deixou na Europa, onde esteve mais de 30 vezes?
José de Broucker – Na França e talvez na Europa, as mais antigas gerações guardam de Dom Hélder lembranças vivas e lamentos: lamentos de não mais poderem se ouvir interpelados por vozes tão livres e libertadoras. Mas, se ainda são raras as pessoas e os grupos que solicitam Dom Hélder, a realidade é que a visão e os engajamentos que ele trabalhava para promover são vividos hoje por quantidades de organizações de sociedades civis em um número muito grande de países, inclusive na América Latina e no Brasil. E, de maneira muito concreta, considero que seus escritos, dos quais muitos ainda estão para ser publicados, constituem uma herança extremamente preciosa para as gerações atuais e futuras.
IHU On-Line – Dom Hélder era conhecido como um homem de vários dons. Para o senhor, é possível destacar uma qualidade imprescindível do arcebispo de Recife?
José de Broucker – Sua preferência por convencer mais do que vencer, e a arte com a qual ele sabia colocar em prática, sem nunca separar verdade e bondade.
IHU On-Line – Como os ensinamentos de Dom Hélder podem ajudar a construir uma nova Igreja? Para o senhor, na visão de Dom Hélder, que mudanças seriam cruciais na Igreja de hoje?
José de Broucker – Após Dom Hélder, eu diria: que ela aplique a si mesma os belos princípios que prega, tanto em nome do Evangelho como do direito natural.
Erica Colares
jun 09, 2009 @ 10:44:03
Um excelente trabalho sobre Dom Helder