A morte não manda aviso prévio
Frei Betto
Aqui na França é geral a consternação pela morte dos 228 passageiros e tripulantes do voo 447 da Air France na segunda, 1 de junho. A aeronave desapareceu sobre o oceano Atlântico na rota Rio-Paris.
O presidente Sarkozy interrompeu o descanso prolongado (na segunda, a França fez feriado religioso) e, em companhia de três ministros, compareceu ao aeroporto Charles de Gaulle para consolar os familiares das vítimas. No Brasil, o presidente Lula encarregou seu vice, José Alencar, de fazer o mesmo.
Há pouco, perdi um conhecido, Roger Wright, no acidente aéreo no sul da Bahia, próximo a Trancoso. Com ele faleceram mais 13 pessoas, entre as quais filhos e netos de seus dois casamentos (a primeira mulher também morreu em desastre de avião). Três gerações de uma única família tiveram suas vidas precoce e tragicamente ceifadas.
A vida é um jogo de sobrevivência. Entre milhões de espermatozóides em busca do aconchego do óvulo, um o consegue. Este um é você, sou eu, e todos os bilhões de habitantes deste planeta. Todos nós sorteados pela loteria biológica. Nenhum escolheu a família e a classe social em que nasceu. O que não deveria representar privilégio para os que estão livres da miséria e da pobreza, e sim dívida social.
O frágil milagre da existência exige duas condições básicas, cada vez mais precárias: oxigênio e nutrição. Ora, sabemos todos que, por culpa da ambição de lucro e falta de consciência de sustentabilidade, contaminamos o ar que respiramos.
Em São Paulo, onde moro, sobretudo crianças e idosos sofrem com a forte poluição. O elevado índice de desenvolvimento da mais industrializada cidade do país exige, em contrapartida, um preço igualmente alto de seus moradores, obrigados a absorverem poluentes que ferem os olhos, contaminam os pulmões, provocam alergias. Seis milhões de veículos que rodam pela capital paulista exalam o gás carbônico que tornam o ar quase irrespirável.
Assegurar ao organismo alimentos em quantidade e qualidade suficientes significa obter trabalho e renda capazes de garantir vida digna e saudável a cada família. No Brasil, ainda estamos longe do patamar de Cuba, onde todos os 11 milhões de habitantes têm direito a uma cesta básica, além de acesso gratuito à educação e saúde.
Hoje, com a crise do capitalismo neoliberal, vemos o desemprego ameaçar a sobrevivência de milhões. Como ninguém suporta passar fome e viver ao desabrigo, é inevitável o aumento da violência urbana.
Todos sabemos que o ser humano se defronta com suas limitações intransponíveis: defeito de fabricação e prazo de validade. É o que a Bíblia chama de pecado original. Haveremos de morrer, ainda que sejam longos nossos anos de vida. Só não sabemos como e quando. Por isso, buscamos imprimir um sentido à nossa breve existência, através da religião, da arte, da profissão e, sobretudo, do amor (a família).
Uns procuram o que todos buscamos – a felicidade – na via equivocada da posse dos bens finitos. Passam a existência a adquirir e preservar bens supérfluos que tanto poderiam ser úteis àqueles que foram injustamente privados de acesso a uma vida digna – os pobres. Outros fazem de sua trajetória existencial um acúmulo de bens infinitos, como amizade, solidariedade e partilha.
Sabemos todos que a felicidade não consiste na soma dos prazeres, como tenta nos incutir a publicidade dessa sociedade consumista. Mas como é difícil cultivar o exercício das virtudes, o rigor ético, a ecobiologia interior que nos livra do apego, da língua ácida, da inveja, do ressentimento, e preenchem-nos o coração e a mente de espiritualidade, altruísmo, sabedoria e fome de justiça!
Como dizia Jesus, a respeito de nossa morte não sabemos nem o dia nem a hora. E nem o modo. Certamente não teremos a sorte de Francisca, personagem do conto de Jorge Onelio Cardoso (1914-1986), “Francisca e a morte”.
A morte, ciosa de seus deveres, foi cedo em busca de Francisca na região em que ela morava. Procurou-a em casa, na roça, nos vizinhos. Aonde chegava, Francisca havia saído pouco antes, sempre dedicada a cuidar dos outros. Vendo que as horas passavam e o último trem da tarde estava prestes a sair, a morte desistiu de encontrar Francisca e levá-la consigo.
Pouco depois, um velho conhecido passou a cavalo e viu Francisca cuidando do jardim da escola. Saudou-a: “Então, Francisca, você não morre nunca?” “Nunca”, retrucou ela, “sempre há algo a fazer”.