O Papa e a crise mundial
Frei Betto
“A Caridade na verdade” é o titulo da mais recente encíclica de Bento XVI, lançada a 29 de junho. Nela o papa enfatiza a dimensão social e política do amor: “Querer o bem comum (todos os grifos são do texto original) e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidade reais” (n.7).
O documento homenageia Paulo VI ao fazer eco à Populorum Progresio (1967), uma das mais progressistas encíclicas dos últimos dois séculos. Bento XVI frisa que “as situações de subdesenvolvimento não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que ‘os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência’. (…) Viva era, em Paulo VI, a percepção da importância das estruturas econômicas e das instituições, mas era igualmente clara nele a noção da sua natureza de instrumentos da liberdade humana” (n. 17).
Enquanto no Brasil se fala em “crescimento”, o papa lembra que “Paulo VI tinha uma visão articulada do desenvolvimento. Com o termo ‘desenvolvimento’ queria indicar, antes de mais nada, o objetivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endêmicas e do analfabetismo. Isto significava, do ponto de vista econômico, a sua participação ativa e em condições de igualdade no processo econômico internacional; do ponto de vista social, a sua evolução para sociedades instruídas e solidárias; do ponto de vista político, a consolidação de regimes democráticos capazes de assegurar a liberdade e a paz” (n. 21).
Em seguida, Bento XVI critica o neoliberalismo: “O objetivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza. (…) Todavia há que reconhecer que o próprio desenvolvimento econômico foi e continua a ser molestado por anomalias e problemas dramáticos, evidenciados ainda mais pela atual situação de crise. Esta coloca-nos improrrogavelmente diante de opções que dizem respeito sempre mais ao próprio destino do homem, o qual aliás não pode prescindir da sua natureza. As forças técnicas em campo, as interrelações em nível mundial, os efeitos deletérios sobre a economia real duma atividade financeira mal utilizada e majoritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração desregrada dos recursos da Terra, induzem-nos hoje a refletir sobre as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade. (…) A crise obriga-nos a projetar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenho, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que resignação, convém enfrentar as dificuldades da hora atual” (n. 21).
A encíclica denuncia que “cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua «o escândalo de desproporções revoltantes». Infelizmente, a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos econômicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários” (n. 22).
E há quem suponha que a Teologia da Libertação morreu… Não apenas continua viva, como hoje encontra abrigo até em documentos papais.