O segredo do poder do capitalismo (IV): a “luta espiritual”
Jung Mo Sung
Imaginemos uma cena. Uma criança, ao deparar-se com brinquedos ou alguma mercadoria que deseja, sem saber muito bem porquê, pede com paixão que sua mãe lhe compre. Ela, sem muita paciência para explicar, ou por falta de argumentos para dialogar, responde dizendo: “não tenho dinheiro, é muito caro!” Resposta simples que encerra a conversa, mas não responde ao desejo da criança, muito menos serve de consolo para a sua frustração. No mundo em que vivemos, é provável que essa criança e sua mãe passarão diversas vezes mais por essa mesma experiência: desejar comprar algo que não sabe por que deseja, e o empecilho a ser transposto para a realização desse desejo: a falta de dinheiro. Se a mãe for rica, ela poderá satisfazer todos os desejos de compra da criança, que irá testando o limite pedindo coisas cada vez mais cara até que encontre o limite intransponível, pelo menos momentaneamente.
Por que crianças e adultos desejam comprar mercadorias que não precisam ou que sua “utilidade real” não compensa o preço pedido? Porque, na maioria de casos de desejo de coisas, não buscamos a sua utilidade, mas o seu caráter metafísico-teológico (apresentado no artigo II da série). Elas nos farão sentir melhores, mais humanos, mais respeitados e invejados por outros. É essa a promessa anunciada pelas propagandas, que é “comprovada” nos filmes, novelas e na nossa vida cotidiana. Queremos ser como nossos “ídolos”, modelos de ser humano que desejamos imitar, e eles nos indicam que devemos ter essas coisas para sermos “mais humanos”.
No passado, quando as pessoas se sentiam “menos gente”, impuras ou pecadoras, iam a seus lugares sagrados (igrejas, templos, terreiros…) para recuperar a sua humanidade e força para continuar a luta pela vida. Hoje também essas pessoas procuram um lugar sagrado, esse lugar que nos fornece força e “pureza” que nos faz mais humanos, os Shopping Centers, para fazer compras ou simplesmente contemplar os seus objetos de desejo e se sentir mais humanos ou esperançosos.
Nós, os seres humanos do passado e do presente, desejamos “ser” mais humanos – pois temos consciência da nossa incompletude – e desejamos isso de modo infinito. Por isso, tantos mitos e símbolos sobre a busca da infinitude, um tema central da espiritualidade, que antes era quase que exclusivamente um assunto da religião. Na nossa cultura, a satisfação da sede do infinito se dá pelo caminho do consumo, pela aquisição e ostentação de mercadorias que possuem esse caráter metafísico-teológico. Por isso, vivemos hoje a profusão da “espiritualidade de consumo”.
E o que nos aparece como obstáculo a ser vencido nesse caminho espiritual? Em linguagem religiosa, qual é o pecado que nos impede o “progresso espiritual”? Desde criança as pessoas aprendem que o obstáculo é “não tenho dinheiro, é muito caro!” Se é caro é bom e merece ser desejado; o problema é a falta de dinheiro. Qual é então a “chave mestra” que abrirá todos os cadeados que nos impedem de prosseguir na satisfação do desejo de ser mais? Dinheiro! E muito dinheiro. As pessoas não desejam adquirir coisas concretas em quantidade excessiva, pois isso não faz sentido. Mas acumular muito dinheiro faz muito sentido porque é uma “riqueza abstrata” que abre portas para todos os desejos. E como desejamos infinitude, desejamos a acumulação infinita, isto é, nunca estamos satisfeitos com a riqueza que acumulamos.
É claro que a busca de acumulação ilimitada de riqueza só pode ser conseguida por poucos enquanto que a pobreza de muitos é uma consequência lógica dessa concentração de riqueza. Mas esse problema não aparece no horizonte de prioridades quando estamos quase todos cegos pela luz resplandecente das mercadorias que nos prometem a felicidade.
Assim, a virtude principal que aprendemos e que move a sociedade capitalista é o “amor ao dinheiro”. Exatamente o contrário do que é ensinado no Novo Testamente: “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tim 6,10). Porque apóstolo Paulo diz isso? Por que o amor ao dinheiro nos leva à cegueira e insensibilidade frente ao sofrimento dos pobres e nos leva a viver centrados na competição por mais dinheiro, movidos pela vaidade e desejo de provocar inveja nos outros.
O nosso desejo por infinitude não pode ser satisfeito, pois somos seres humanos finitos. Mas podemos experienciar “plenitude possível” desse desejo na experiência de Deus que ocorre quando somos capazes de amar solidariamente os/as excluídos/as da sociedade e na vida em comunidade (Eu desenvolvi mais esse tema da “plenitude possível” no livro “Deus em nós”). E nessa experiência espiritual descobrimos que todos somos humanos amados gratuitamente por Deus, independente da riqueza que temos ou não.
Sem a revelação de um outro caminho mais humano de tentar satisfazer esse desejo de “ser” humano, o único caminho que as pessoas (ricas e pobres) têm é o oferecido pela cultura capitalista: o ter mais para ser mais. É essa vida em comunidade e solidariedade que serve como uma luz para mostrar o equívoco da espiritualidade do consumo. E sem o desmascaramento dessa cultura espiritual-materialista, as críticas ao capitalismo como um sistema idólatra não fazem sentido para o “mundo”. Foi nesse sentido que escrevi no artigo anterior: “ou a TL, juntamente com outras teologias, se ocupa dessa tarefa, ou ela e outras teologias cristãs serão irrelevantes para o nosso tempo.” Para isso, a teologia deve olhar, não para os céus (cf At 1,11) ou realidades “teológicas divinas”, mas para a “luta espiritual” que está ocorrendo no mundo.