Rebimboca da beribelinha
Frei Betto
Ganha um doce quem souber o que significa rebimboca da beribelinha.
Enguiçado numa esquina, o carro de um amigo viu-se socorrido por uma oficina ambulante instalada numa kombi. O mecânico levantou o capô, fez ares de entendido, mexeu daqui, fuçou dali e, peremptório, pronunciou o diagnóstico: “Precisa trocar a rebimboca da beribelinha”.
“Quanto custa isto?”, indagou o motorista. “É uma peça rara e cara; mas, por cem reais, troco para o senhor.”
Feito o acordo, o rapaz enfiou a cabeça no motor e, ferramentas em mãos, iniciou a cirurgia mecânica. Findo o serviço, cinco minutos depois, o carro ligou e o motorista pagou. No dia seguinte, por precaução mineira, levou o veículo na oficina da concessionária. Só então soube que não existe rebimboca da beribelinha; o enguiço ocorrera porque soltara o cabo da bateria.
Ora, todos sabemos que existe sim rebimboca da beribelinha. É essa capacidade de certas pessoas explicarem o inexplicável: a defesa de políticos corruptos (basta comparar renda e patrimônio para se tornarem eticamente indefensáveis); a revogabilidade do irrevogável; o ex-presidente ao negar conhecer um jovem apadrinhado por ele; o senador que recorre a notas frias de frigoríficos (com perdão da redundância) para justificar sua dinheirama; a anistia a torturadores que jamais foram punidos; o famoso inquérito de trinta dias para apurar acidentes; o sumiço de drogas apreendidas pela polícia; as propaladas vantagens dos alimentos transgênicos; os anúncios de pedofilia virtual que usam crianças como iscas de consumo; a responsabilidade social de empresas que degradam o ambiente inteiro; os pregadores religiosos insensíveis à miséria circundante; o elegante contrabando de lojas de grifes etc. etc.
Rebimboca da beribelinha é a capacidade de falar sem dizer nada; prometer sem cumprir; governar sem administrar; sorrir sem estar alegre; enfim, roubar o porco e, surpreendido, sair gritando de olho no ombro: “Tira esse bicho daí! Tira esse bicho daí!”
Hoje em dia a rebimboca da beribelinha faz muito sucesso na TV. Tanto que mantém hipnotizada, dia a dia, durante horas, milhões de telespectadores que, além de umas tantas informações dos telejornais, nenhum proveito tiram para ampliar sua cultura, tornar mais crítica sua consciência ou aprofundar sua vida espiritual.
Todos nós temos enguiços na vida, dificuldades, desafios, enfim, peças a serem trocadas e decisões a serem tomadas para saber em que rumo prosseguir. Muitos, acovardados frente aos momentos críticos, apelam para a rebimboca da beribelinha. Reclamam da vida, da realidade, da política do país, do estado atual do mundo, mas nada fazem para mudar esse estado de coisas. Ficam no queixume, alugando os ouvidos de quem está ao lado, destilando ira pela vida fora, à espera de quê? Ora, é evidente, à espera de quem surja e lhes ofereça a rebimboca da beribelinha.
O maior acervo de rebimboca da beribelinha são os arquivos dos parlamentos, nos quais se conservam os discursos de vereadores, deputados e senadores. Quanta empáfia, quanto palavrório, para tão pouco resultado e proveito!
A internet não fica atrás, sobretudo a quantidade de textos, supostamente assinados por autores famosos, que circulam: pura rebimboca da beribelinha. Nada acrescentam à nossa douta ignorância. Enquanto isso, o mundo, lá fora, arde em chamas: guerras, terrorismo, bases usamericanas na Colômbia, gripe suína, narcotráfico, desmatamento da Amazônia, crianças-mendigas improvisadas em acrobatas nas vias dessinalizadas da vida…
Se confissão auricular ainda fosse obrigatória na Igreja, não seria nada mal sugerir ao penitente, em seu exame de consciência, avaliar o quanto seus atos e pensamentos, intenções e palavras, estão repletos de rebimboca da beribelinha.
Deixo a sugestão de se instituir, em clubes e condomínios, empresas e repartições públicas, grupos de amigos e associações, o prêmio anual Rebimboca da Beribelinha. A ser dado a quem, como o meu amigo do carro enguiçado, acredita no primeiro que lhe entuba pelos ouvidos lé com cré.