O luxo e o lixo do alimento
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
O empenho gigantesco de produção e distribuição de alimentos em escala mundial, no contexto da economia globalizada, tropeça com quatro escândalos que hoje chamam a atenção. O primeiro é que, enquanto cerca de um bilhão de pessoas em todo mundo passa fome ou se encontra em estado crônico de subnutrição, uma quantidade talvez ainda maior tem problemas com o excesso de comida. São contradições bem conhecidas da Organização Mundial da Alimentação e Agricultura, das Nações Unidas (FAO/ONU): de um lado, de acordo com os níveis mínimos estabelecidos pela FAO, insuficiência de calorias e mortes causadas pura e simplesmente pela falta de alimento; de outro, gastos exorbitantes com os males relativos à obesidade, ligados especialmente aos efeitos colatarais na área cardiovascular. Isso para não falar da insatisfação com o próprio corpo de tantos jovens e adolescentes de ambos os sexos, sobretudo diante do padrão de beleza difundido de forma estridente pelos mass-media através dos eventos fashion e suas top models.
O segundo escândalo é que, ao lado da fome e subnutrição humanas, que em alguns casos continuam a crescer, cresce igualmente a produção e comercialização de alimentos para os animais. Nas prateleiras de muitos supermercados, as variedades destinadas a estes últimos quase se iguala (se é que às vezes não supera) àquelas destinadas aos seres humanos. Não poucos “bichinhos de estimação” dispõem de mais calorias diárias, de mais comodidades e de mais carinho do que milhões de crianças abandonadas em todo planeta. Nada contra o bom trato aos animais, evidentemente! Tomara que todos eles, juntamente com todos os homens e mulheres, fossem tratados com o mesmo cuidado e atenção! Permanece de pé, portanto, a esperança de que toda pessoa humana possa desfrutar ao menos das mesmas oportunidades oferecidas a tais criaturas privilegiadas.
Em terceiro lugar, vem o escândalo dos agrocombustíveis. A fome e a subnutrição não impedem que os donos das terras no mundo inteiro (e aqui vale um destaque para o Brasil) sigam produzindo matéria prima para o etanol que alimentará a voracidade dos automóveis, privilegiando não raro o transporte privado em detrimento do coletivo. Neste caso, a contradição se revela bem mais danosa. No momento de buscar alternativas ao combustível fóssil (como carvão mineral e petróleo), a ciência e a tecnologia parecem optar pela solução mais fácil ou mais à mão, recorrendo à cana-de-açúcar, ao milho, entre outros produtos agrícolas. Porém, a opção de reservar imensas extensões de solo agricultável para a produção de combustível, cedo ou tarde, entrará em rota de colisão com a necessidade sempre mais urgente de produzir e distribuir alimentos. Também entrará em rota de colisão com os esforços de entidades, movimentos e organizações que lutam pela preservação do meio ambiente. O estômago contorcido pela fome deve ter absoluta primazia sobre o tanque dos carros.
Por fim, temos o escâdalo do desperdício. Talvez o lixo das mansões de bairros nobres, de paraísos balneários, dos restaurantes mais requintados e dos hotéis cinco estrelas – para mais da metade da população mundial – represente um verdadeiro luxo. Na contramão da pobreza e da miséria, da fome e da subnutrição, quantas toneladas de alimento são diariamente jogadas fora, e condenadas a apodrecer! Quantos pratos servidos em banquetes luxuosos, com mesas revestidas de todo tipo de iguarias, enfeites e ostentação, acabam retornando intactos à cozinha, destinados quase sempre aos lixões da cidade! E ali, num cenário pungente e estarrecedor, crianças e adultos em desespero, pessoas ou famílias inteiras, disputarão ferozmente os restos de comida podre com os ratos, os abutres e os cães. Em pleno século XXI, o luxo e o lixo se encontram e travam uma batalha de vida e morte diante de uma sociedade onde, contrariamente ao que vem pregando o Papa Francisco, a cultura da indiferença parece tomar o lugar da cultura da solidariedade.
Roma, 20 de novembro de 2014