Por um novo humanismo na economia
Marcus Eduardo de Oliveira
Parece ser consenso que a humanidade vive uma crise civilizatória. A fome que atinge 1 bilhão de seres humanos talvez seja a prova incontestável que as coisas não andam bem em matéria de dignidade e respeito ao próximo, termos esses caros a sociedades que se encontram “desconectadas” das boas e adequadas políticas públicas sociais. Até mesmo porque, nesse sentido, uma polêmica ronda essa discussão. Dizem alguns que temos que produzir mais porque somos muitos. Será isso verdade? Não seria melhor mudarmos o foco: produzirmos melhor (com qualidade), e não mais (diminuir a quantidade). Temos que “distribuir” e não “concentrar”.
No que toca a ignomínia da fome, temos que evitar o desperdício que beira cifras indecentes de 30% a 40% da produção de grãos e distribuir melhor os alimentos cuja produção atual é suficiente.
A produção de alimentos é suficiente
A produção mundial de alimentos dos dias de hoje dá conta suficiente das 6,7 bilhões de bocas a serem alimentadas. De acordo com a FAO (Fundo para Agricultura e Alimentação – ONU), entre 1950 e 2000, a produção mundial de grãos mais que triplicou, passando de cerca de 590 para mais de 2 trilhões de toneladas métricas ao ano. De 1950 a 1975, a produção de grãos aumentou em média 3,3% ao ano, um percentual maior do que o do crescimento populacional, de 1,9% ao ano.
No entanto, o “probleminha” da alocação/distribuição dessa produção nos lugares que mais carece de ajuda continua a não acontecer. E, assim, os que tanto precisam acabam ficando sem acesso. Menos da metade dos grãos hoje em dia é destinada à alimentação, enquanto a maior parte serve para fabricar rações animais, biocombustíveis e outros produtos industriais. Além disso, deve-se computar ainda o efeito de pragas sobre a plantação e o apodrecimento entre a colheita e o consumo. O que falta para uns, sobra para outros. É a distribuição que não é feita a contento.
Desse modo, temos que de um lado há um 1 bilhão de famintos; do outro, 1 bilhão de obesos.
E assim, outros e outros “probleminhas” que giram em torno da má distribuição de recursos e rendas vão se agravando, contribuindo, sobremaneira, para desumanizar ainda mais as relações entre nossos pares.
Em especial sobre a questão dos subnutridos, cabe ressaltar que esse mal acomete uma entre três crianças. Em números absolutos, a subnutrição e a fome crônica afetam aproximadamente 200 milhões de pessoas na Índia; mais de 200 milhões na África; 40 milhões em Bangladesh; 15 milhões no Afeganistão. O número de mortes por causas relacionadas com a fome é da ordem de nove milhões por ano. Isso resulta em uma média de 25 mil mortes por dia.
Percebe-se, com isso, que os números que perfazem a desigualdade são gritantes e inadmissíveis.
A conta disso é bastante simples: tem pouca gente ganhando muito, enquanto há muita gente que nada está ganhando. A riqueza de uns está sendo literalmente construída sobre a pobreza de milhões de pessoas.
O consumo excessivo de uns é a contrapartida da escassez de outros. Para uns sobra o que tanto falta a outros tantos. É o “desequilíbrio” que parece assim regular as atividades da economia gerando, na ponta final, mais desigualdade.
A falta de equilíbrio
Se as relações econômicas fossem, ao menos, próximas do equilíbrio, bastaria dividir a produção mundial (60 trilhões de dólares) por 6,7 bilhões de pessoas e obteríamos algo como 9 mil dólares por pessoa.
Mas, sabemos que não é bem assim que a coisa funciona. E sabemos também que a desigualdade não é natural, é imposta. E, sendo imposta, alguém está no “centro” dessas decisões dirigindo o destino de muitos que vão sendo condenados à miséria e a exploração. É a desumanização da economia que provoca a desumanização de nossos pares.
E a exploração está por todos os lados, incluindo até mesmo os que estão fora desse “deus-mercado” que é abençoado pelo “consumo excessivo”, regulado pela lógica mercadológica que defende que mais e mais produtos devam ser “empurrados” para um número cada vez mais crescente de compradores. É a lógica perversa do consumo excessivo que prioriza apenas o consumidor detentor de poder aquisitivo.
Nesse pormenor, o velho e bom Marx chegou a afirmar que “é melhor ser explorado pelo capitalismo do que não ser explorado por ele”. Marx sentenciava que ao não ser explorado pelo capitalismo, o trabalhador visivelmente não “existia”, pois se encontrava fora do mercado de trabalho (no desemprego) na condição de nem mesmo ser “explorado pelo sistema” (excluído).
Percebemos então que a exclusão social é de tamanha ferocidade que atinge até mesmo quem dela não contribui nem para o lucro do capitalista, nem para aumentar o número de produtos disponíveis no mercado. Em nossa opinião, esse é o “excluído dentro da exclusão” que contribui, assim, grosso modo, para a total desumanização das atividades.
Cabe reiterar que os números dessa “desumanização” são alarmantes. Do lado dos óbitos são: 10 milhões de crianças mortas a cada ano por problemas com “insegurança alimentar”; 25 milhões de vítimas do HIV/AIDS até os dias de hoje; 1 bilhão e meio de pessoas sem acesso à água potável; 3 milhões de mortes ao ano na África em decorrência da malária; meio milhão de mulheres que morrem no parto por deficiências no sistema de saúde. Acrescenta-se a isso o aquecimento global que provoca o desequilíbrio do ecossistema a ponto de chegarmos a seguinte conclusão: não é o planeta Terra que está prestes a entrar em decomposição, somos nós. Não são os animais que entrarão em extinção, somos nós. Não é o habitat natural que soçobrará, somos nós.
O rumo que a economia tomou nos últimos quatrocentos anos apenas reforça essa idéia. No início, com os clássicos ministrando as primeiras lições, no centro da análise econômica estava o indivíduo. Era a ação humana – palavra cara a Escola Austríaca de Economia – o fator responsável pelos avanços.
Com o passar dos tempos e com a chegada dos marginalistas na cena econômica, a análise matemática ganhou relevância e as necessidades humanas deixaram de ser o ponto fundamental de preocupação.
O que fizeram então esses analistas econômicos da Escola Marginalista? Jogaram para escanteio o cabedal sócio-econômico que mirava as necessidades humanas e estabelecia o bem-estar como meta. Desde então, a economia se “matematizou” e, aos poucos, o social se tornou apêndice da matemática econômica.
Disso surge uma pergunta inevitável: o que tem que ser feito para resgatar o foco social e humano que um dia caracterizou a abordagem das ciências econômicas?
O resgate necessário
Precisamos praticar a Economia Solidária, a Economia Sustentável, a Humanização da Economia na qual o dinheiro não seja o ponto central. É simples? Não. Porém, não é impossível.
Para tanto, “É preciso reinventar uma economia da convivência”, diz Edgar Morin. Dom Pedro Casaldáliga, nessa mesma linha, fala em “humanizar a humanidade”; enquanto o educador Marcos Arruda escreve sobre tornar “real o possível”.
Mas, o que é “real” e o que significa, de fato, o “possível”? Real é desejarmos um mundo melhor para todos, sem exceção, nem discriminação. Possível é praticarmos isso mediante a cooperação e a solidariedade. No lugar da competição coloquemos a cooperação. Em lugar do individualismo, solicitemos a coletivismo, a ajuda mútua, a socialização dos benefícios.
A canção popular entoada em cantos religiosos profetiza que “Deus criou o infinito para a vida ser mais”. Viver é isso. Viver é conviver. Não nascemos sozinhos, não estamos isolados, não habitamos ilhas em isolacionismo perpétuo. Vivemos em comunidade. Em comum unidade. Logo, vivenciamos o coletivo, não o individualismo.
No entanto, só vale a pena viver em um mundo onde esse mundo mereça ser vivido. Do jeito que está, com as desigualdades sociais e econômicas esparramando miséria e indecência por todos os lados, até mesmo sonhar a possibilidade de construir uma vida igualitária e digna torna-se algo espinhoso. Parte daí a necessidade de humanizar a economia, visto que a economia “estuda” o comportamento dos agentes econômicos. Assim, por essa casual definição, a economia estuda o “nosso” comportamento, porque somos, antes de qualquer outra coisa, agentes dessa transformação que se faz necessária.
É nesse sentido que desejamos promover o resgate do verdadeiro fundamento da ciência econômica e torná-la útil em nosso favor, usando a Economia como instrumento da construção do bem comum. Nesse pormenor, cabe ao economista entender o mundo e propor alternativas.
Ladislau Dowbor nos diz que “a economia é um meio que deve servir para o desenvolvimento equilibrado da humanidade, ajudando-nos, como ciência, a selecionar as soluções mais positivas, a evitar os impasses mais perigosos”.
Em nosso entendimento, a economia só faz sentido de ser e torna-se útil se, e somente se, agrupar em seu intento crescimento econômico (equilibrado), equilíbrio ecológico (meio ambiente sustentável) e progresso social (justiça e equidade). Fora disso, a Economia encontra-se totalmente desconectada da realidade.