Desarmamento: Quatro anos após o referendo
Lindolfo Alexandre de Souza
O noticiário dos últimos dias está repleto de assuntos relacionados à violência. Entre as notícias publicadas, umas delas refere-se à tragédia que envolveu a família do ex-governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho, na cidade de Sorocaba. Após uma discussão familiar com o filho de 20 anos, um irmão do ex-governador tirou a vida do rapaz e, em seguida, diante da esposa, cometeu suicídio com a mesma arma de fogo. Além deste acidente familiar, também foram destaques nos meios de comunicação as mortes de policiais, traficantes e moradores nos conflitos ocorridos no Rio de Janeiro.
Ao ler essas notícias, várias idéias me vieram à cabeça. Relutei em colocá-las no papel, motivado por um sentimento de respeito à dor das famílias enlutadas. Tanto na tragédia de Sorocaba quanto no Rio de Janeiro, não foram apenas números nem estatísticas que se perderam, mas vidas humanas. E respeitar a dor do outro é sempre um gesto que nos humaniza.
Mas como a dor é inevitável à experiência humana, é sinal de sabedoria quando somos capazes de aprender com ela. E estes fatos, como exemplos das tristes coincidências que a história é capaz de reservar, acontecem num momento bastante provocador. Eles surgem às portas de 23 de outubro, data em que, em 2005, todo o Brasil foi às urnas para participar do referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições.
Como sabemos, o resultado final do referendo foi a vitória do “Não”. Isso significou que, com o aval de 59.109.265 pessoas, o que correspondeu a 63,94% da quantidade de votantes, o Brasil optou pela continuidade da comercialização de armas de fogo e munições. O “Sim”, que previa a proibição da comercialização, obteve apenas 36,06%, com 33.333.045 votos.
Resultado legítimo e democrático, sem dúvida. Entretanto, passados quatro anos, é possível questionar a eficácia da opção realizada naquele momento pela sociedade brasileira.
O episódio de Sorocaba ganha visibilidade em função de ter acontecido na família de uma pessoa pública. Mas, infelizmente, não é um fato isolado. Basta olhar com atenção as constantes notícias publicadas sobre desavenças familiares que acabam em tragédias, principalmente em situações em que os envolvidos estão sob o efeito de álcool ou drogas. Quanto à situação do Rio de Janeiro, ainda que seja de proporções bem mais complicadas, sem dúvida a facilidade ao acesso às armas de fogo é um elemento que potencializa as possibilidades de violência.
Na época do referendo, os defensores do “Sim” tentaram levar à sociedade a reflexão de que a posse de armas de fogo pelo cidadão comum não é garantia, em nenhum momento, de mais segurança. Como uma das organizações presentes na Campanha pelo Desarmamento, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou uma nota significativa, intitulada “Diga Sim à Vida”, em 15 de agosto de 2005. No texto os bispos católicos alertavam que “o porte e o uso indiscriminado de armas de fogo transformam, muitas vezes, conflitos banais em tragédias”. Ainda de acordo com a nota da conferência episcopal, somente no ano de 2002 foram mortas 38.000 pessoas, uma média 104 por dia. Isso significa uma vida ceifada a cada 14 minutos por arma de fogo.
Evidentemente que a questão do desarmamento é apenas uma dimensão entre as muitas que permeiam os complicados debates a respeito da segurança pública. Especialistas divergem sobre a eficiência de tal proposta, enquanto números divergentes e contraditórios, de um lado e de outro, disputam a opinião pública.
Mas o desarmamento é, de fato, uma proposta levada a sério por mais de 33 milhões de brasileiros que, há quatro anos, votaram por um novo modelo de sociedade, motivados pela idéia de que desarmar as pessoas é um passo importante para a construção de um mundo menos violento. Que essas pessoas não se sintam derrotadas, mas vivam este 23 de outubro com um novo entusiasmo em busca de uma sociedade pautada por uma cultura da paz. Se o “Não” ao desarmamento triunfou em 2005, em nenhum momento é possível dizer que por este resultado, e passados quatro anos, a sociedade está mais segura.