Uma santidade para os tempos de hoje
Maria Clara Lucchetti Bingemer
O mundo em que vivemos não é mais como aquele onde viveram nossos antepassados. Isso é verdade da economia, das comunicações, e também e não menos das religiões, sua prática e o compromisso social que elas motivam. Se é verdade da religião, de sua prática e do compromisso dela derivado, também o é da teologia, que é a reflexão sobre a fé que procura expressar-se no confuso campo religioso que hoje percebemos.
Aconteceram muitas mudanças no decurso das últimas décadas sobre a vivência da fé. Mudou o perfil dos agentes sociais, a configuração da militância cristã e seus efeitos e reflexos sobre o entendimento que se tem sobre a maneira de viver a fé. É o momento de nos perguntarmos para onde vai essa nova maneira de conceber a vida cristã que deverá ser vivida por e para esses novos agentes e protagonistas.
Hoje vivemos num mundo onde a religião muitas vezes desempenha mais o papel de cultura e força civilizatória do que propriamente de credo de adesão que configura a vida. a pluralidade advinda da globalização afeta não apenas os terrenos econômico e social, mas igualmente os políticos, sociais, culturais e também religiosos. Hoje as pessoas nascem e crescem no meio de um mundo onde se cruzam, dialogam e interagem de um lado o ateísmo, a descrença e/ou a indiferença religiosa, e de outro lado várias religiões, antigas e novas que se entrecruzam e se interpelam reciprocamente. O Cristianismo histórico se encontra no meio desta interpelação e desta pluralidade.
A sacralidade tradicional apresentava uma face heterônoma, ou seja, supunha a adesão a um conjunto de normas e de verdades que, vindas de fora, se impunham ao ser humano como indispensáveis para a experiência da fé e a prática da religião. Hoje, após o advento e a crise da modernidade, a heteronomia encontra-se na sombra, e em seu lugar aparece, clara e inquestionável, a autonomia, ou seja, a liberdade do sujeito humano de fazer suas opções, escolher seu caminho e seu destino, sem se reger por autoridade alguma que lhe seja imposta desde fora dele mesmo e de sua consciência.
A filosofia moderna reforçou esta afirmação de fundo e teve seu impacto e conseqüências sobre a vivência da fé e da espiritualidade cristãs. Hoje, com a queda dos antigos paradigmas e o advento dos novos, e com a complexificação do campo da vivência do religioso, a mudança de rosto dos agentes, o lugar e o papel da autonomia e heteronomia se apresentam de forma diferente.
O momento atual implica em que, no meio da secularização e a pluralidade religiosa, em meio à fragmentação mesma da pós-modernidade, o ser humano redescobre o primado da alteridade e revaloriza a experiência dessa mesma alteridade. Disso dão testemunho a volta a um crescer de importância dos paradigmas pessoais, das situações humildemente concretas, onde o Bem, o Amor, a Plenitude, se encarnam em pessoas vulneravelmente humanas, limitadas, frágeis, pecadoras e mortais. Aí é o lugar onde a resposta nos está sendo dita e onde o intrincado dilema entre autonomia e heteronomia vai encontrar sua possível interface. Não pela vaidade das hipóteses teórico-especulativas, mas sim pelo testemunho daqueles e daquelas que tocaram a esfera da Alteridade que lhes voltou a dar sentido à vida fragmentada pelo estilhaçamento de uma compreensão global do mundo e da vida. Desde o ponto de vista cristão, trata-se de aventurar-se a falar de algo que se conhece por experiência, mas que é infinitamente maior do que a estatura humana, seus vícios e erros: trata-se da intimidade com Deus, da nova compreensão do que seja ou venha a ser a santidade.
Se o ideal, a finalidade do ser humano, do indivíduo é o “eu ” como o mesmo, a heteronomia e a alteridade que aparecem como norma, podem realmente ser experimentadas como escravidão, como alienação, diante do outro que me obriga, que me oprime ou que me aliena. Se o ideal e a finalidade são os outros, ou seja, são a construção da comunidade e o estabelecimento de relações de solidariedade, de liberdade vivida na realidade, então nesse caso a alteridade do outro passa a ser – com todos os riscos e perigos e conflitos existentes pelo caminho – condição de possibilidade do “eu”, algo que o institui, o funda, e lhe permite ser e existir.
O cristianismo coloca como caminho possível da identidade do “eu”o amor ao outro. Amar o outro como a si mesmo é, desde o Antigo Testamento, o maior mandamento, paralelo à grandeza de amar a Deus sobre todas as coisas. No Novo Testamento ambos são tomados, segundo Jesus, como resumo, síntese feliz da lei e dos profetas. No cristianismo ,portanto, o ser humano é visto como alguém livre para amar. A liberdade não é concebida como uma heteronomia opressiva, no sentido de uma lei exterior que esmaga e destrói a subjetividade, mas é dom gratuito de Deus que coloca e recoloca sempre de novo o homem livremente no caminho do amor, no percurso em direção ao outro. E se Paulo afirma que não é a lei que salva, por outro lado é o mesmo Paulo que insiste que na obediência amorosa é que está a verdadeira liberdade, desde que se entenda a obediência – o verbo ob audire significa escutar – como escuta prática da Palavra instituinte, reveladora e fundadora de Deus.
Talvez o nó da questão – a partir da visão cristã – esteja então na superação da compreensão de autonomia e de heteronomia como dois pólos irreconciliáveis, sem que haja saída possível para o impasse. A visão cristã tenta dar um passo adiante nesse sentido, ao dizer que a liberdade não vem puramente de fora, mas está dentro do ser humano, como inscrição ali gravada, da interpelação epifânica, manifestativa do rosto do outro – do pobre, da viúva, do órfão, do estrangeiro – que institui para ele a única lei, que é a lei do amor. E o amor aí entendido não o é apenas em termos de busca do prazer e de satisfação dos instintos e das necessidades. Mas traz o selo da sacralidade, enquanto é feit ode saída de si mesmo, de entrega gratuita de si, de oblatividade, na qual tudo é posto a serviço da construção de uma solidariedade fraterna, de novas relações, de um reino de liberdade em que mesmo a renúncia sexual pode ter o seu lugar, enquanto opção de liberdade em nome de um projeto maior.
Ter utopias que sejam motor da vida; sentir sob os pés um sentido maior que lhes sustente a existência e pelo qual sejam capazes de ir até o fim no êxodo de si mesmos e no dom da própria vida – eis a santidade que o mundo de hoje necessita. Na festa de todos os santos que celebramos no dia 1 de novembro, peçamos a Deus que nos dê muitos destes santos e santas que sabem desprender-se e desapegar-se dos próprios hábitos, gostos e atitudes para ir ao encontro dos outros, livres para servir, livres para amar.