O fundo do poço
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Todos estamos familiarizados com a expressão “fundo do poço”. Denota uma situação limite. Um ponto em que as forças se esgotam e não sabemos mais para quem apelar. O chão foge debaixo dos pés, as coisas escorregam por entre os dedos. O desespero bate à porta e a esperança sai pela janela. Sentimo-nos suspensos por um fio sobre um abismo sem fundo. Onde se segurar? Em quem confiar? O que fazer?
Seguindo a trilha da oração nua, quatro exemplos, embora díspares entre si, nos dão algumas luzes para semelhantes momentos de escuridão. Dois são extraídos da Bíblia e dois da literatura. Comecemos pela literatura. Aliócha é um dos personagens centrais da obra Irmãos Karamázovi, de Fiódor Dostoievski. A dada altura do romance, ele vive profundamente um confronto entre, de um lado, seu ideal espiritual de monge e, de outro, a realidade social da Rússia e a situação moral da própria família. Desesperado com o abismo entre elas e com a falta de respostas, Aliócha se atira ao chão e morde o pó da terra. No meio da noite, com o rosto colado ao solo pátrio, como uma criança abraçada à mãe, chora longa e copiosamente pelo destino da pátria, pelo pai e pelos irmãos, por si mesmo, pela vida…
Riobaldo Tartarana é uma criação genial de Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas. No desenrolar dos acontecimentos, apaixona-se por Diadorim. O grande problema é que há um segredo oculto, tanto a Riobaldo quanto ao leitor. Diadorim, embora sendo um dos companheiros do bando de cangaceiros de Tartarana, é no fundo uma mulher disfarçada de homem. Riobaldo não consegue entender esse amor, tem a impressão de que está ficando louco, sente-se interiormente dilacerado, se desespera. Certo dia, marca um encontro com o Coisa Ruim (o demônio), numa encruzilhada, à meia noite, para esclarecer as coisas…
Passemos aos casos bíblicos. O primeiro vem do Livro de Jonas. Embora situado entre os profetas, trata-se na verdade de uma espécie de novela exemplar, escrita no período pós-exílico. Seu objetivo é combater o nacionalismo exacerbado dos israelitas, apostando na conversão da cidade de Nínive, símbolo do paganismo. O personagem Jonas é enviado a profetizar na grande cidade. Tão nacionalista como seus conterrâneos, procura escapar ao desígnio dos céus, escapando “da face de Deus”. Embarca num navio, mas em alto mar sobrevém uma tempestade. Os tripulantes lançam a sorte para vem de quem é a culpa, e esta recai sobre Jonas. Ele é atirado ao mar e engolido por um grande peixe. Esta simbologia, não rara nos escritos antigos, indica uma auto-anulação tão radical que, psicologicamente, o homem recusa a própria vida, retornando ao ventre materno. É como se renegasse a si mesmo: ao seu passado, ao seu presente e ao seu destino futuro. Sentimento bem mais explícito no profeta Jeremias: “Maldito o dia em que nasci!” (Jr 20, 14-18)…
O segundo exemplo bíblico é o de Jesus, na Quinta-feira Santa, quando se retira com os apóstolos mais íntimos no Getsêmani. Diz o Evangelho que “ele começou a apavorar-se e a angustiar-se”. E disse-lhes: “A minha alma está triste até a morte, permanecei aqui e vigiai”. Depois, dirigindo-se em oração ao Pai, diz: “Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice; porém, não se faça o que eu quero, mas o que tu queres”. O que mais o apavora e o angustia? Os suplícios que o esperam, ou fracasso de sua missão e de sua vida? Nada tem para entregar ao Pai! É este mesmo o caminho? O silêncio de Deus o torna livre para encarar os fatos: “Basta, a hora chegou, eis que o Filho do Homem está sendo entregue às mãos dos pecadores” (Mc 14,32-42)…
Os quatro parágrafos anteriores terminam com reticências. Em todos e em cada um deles, há algo mais a dizer. De início, nos quatro exemplos, os envolvidos chegam a uma nudez total. Nos dois casos da literatura, a aflição leva os personagens ao coração de uma tormenta que se arrasta por páginas e páginas. É preciso tomar uma decisão. Enquanto Aliócha, ao unir-se à terra russa, se encontra com a história do seu povo e a história de sua família, ambas marcadas por contradições profundas e irremediáveis, Riobaldo, procurando corajosamente o encontro com o demônio, tropeça consigo mesmo. Identifica um amor que contradiz a natureza e a cultura de sua gente e do povo brasileiro, tão patriarcal quanto machista. O primeiro vai encontrar solução dedicando-se a um serviço gratuito, consciente agora da ambiguidade da condição humana. O segundo permanece perplexo com o sentimento que lhe revolve o peito e os costumes. Encontrará sossego e explicação somente após a morte de Diadorim, quando descobre, por fim, que o amigo a quem tanto amou em vida, é na verdade uma mulher. “O diabo na rua no meio do redemoinho”, constata! “Por que tudo na vida da gente é tão misturado”? – pergunta ele, sem obter resposta. Em ambos os exemplos, está em jogo a identificação da pessoa com a nação, a fusão entre o individual e o coletivo. Aparecem claramente as tensões e conflitos dessa integração, sempre difícil, sempre em aberto, sempre em processo.
Já os casos bíblicos trazem à luz uma espiritualidade que amadurece na liberdade e na responsabilidade. Jonas foge de tudo e de todos, até a anulação total da própria existência. Teme encarar a abertura ao outro e o compromisso. Prefere seu nacionalismo estreito e preconceituoso. No miolo mais profundo da fuga, no fundo do poço, passa a refletir sobre si mesmo e a abrir-se a Deus. Imediatamente é relançado a Nínive, lugar de onde havia escapado. O reencontro é múltiplo e simultâneo: consigo mesmo, com Deus e com a missão. O auto-conhecimento, a intimidade com Deus e o retorno à ação constituem as várias dimensões de uma nova mística que leva a um novo compromisso sócio-político.
Jesus, no Getsêmani, encontra-se no auge da angústia. Dizem os escritos evangélicos que chega a suar sangue. As trevas parecem tudo dominar. Vendo sua missão humanamente fracassada, pergunta por uma alternativa, busca outro caminho possível. Mesmo sendo-lhe tão íntimo, Abba = Pai, simplesmente silencia. Deus é fiel não porque nos tira do fundo do poço, mas porque nos deixa aí, para que possamos encontrar livremente formas de saída. Para que possamos dar as mãos a outros e encontrar soluções conjuntas. O dom da liberdade é levando às últimas consequências: Deus não é o pai que coloca tapete na frente do filho para que ele, ao tropeçar, não se machuque. O encontro com Deus não resolve nossos problemas, apenas lhes outorga nova luz. E Jesus entende isso: não pede nada que ele mesmo não possa realizar. Livre e responsável, dá as costas à angústia e parte para o confronto com os soldados e as autoridades. Assume até o fim as consequências de suas palavras e de seus atos. Só depois da escuridão da cruz é que virá a luz da ressurreição.