Jesus estava na barca
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
A tarde chega. Jesus e os discípulos decidem “atravessar para o outro lado do mar”. Mas quando a noite cai, “começa a soprar um vento muito forte”, o mar se agita e “as ondas se lançam dentro da barca”. Improvisamente, três poderosos elementos da natureza – o vento, as trevas e as águas – fundem sua fúria devastadora numa tempestade que aterroriza os discípulos, deixando-os à deriva de uma turbulência imprevista. O caos ignoto, primitivo, os envolve de forma assustadora. O naufrágio se faz iminente, a vida parece suspensa por um fio. Jesus, porém, “estava na parte de trás da barca, dormindo com a cabeça num travesseiro” (Mc 4, 35-41).
“Mestre, não te importas que morramos?” – é o grito dos discípulos acordando-o. Não se trata de um grito único, isolado. Ao contrário, faz coro ao clamor de todo o ser humano. No vórtice voraz do desespero, onde predomina a dor, o mal, a violência e o sofrimento, essa é a linguagem que une a todos. Insegurança e terror são as coisas que melhor se condivivem. O grito é tanto mais forte quanto menos coerente a lógica dos acontecimentos. Tanto mais espantoso e incompreensível quanto maior a inocência dos envolvidos. Tanto mais estridente quanto mais silenciado ou silencioso. Tanto mais paralisante quanto mais se agitam os elementos enfurecidos.
A barca em meio à escuridão e à tempestade: metáfora que, só em pensar, provoca calafrios. De imediato, a imagem nos transporta ao ventre da embarcação. Túmulo com as portas escancaradas, ao invés de útero protetor. Querendo ou não, fazemo-nos solidários com seus pobres ocupantes. Afinal, a existência humana não deixa de ser uma travessia “por mares nunca dantes navegados”, como diz o poeta português Camões. Esperam-nos ondas bravias, ameaçadoras, mais ainda se acompanhadas pelas sombras da noite. Daí o medo e o apelo agônico: salva-nos!
Temor e súplica se levantam igualmente do fundo escuro de nosso sofrimento. O grito ou o silêncio, gestados ambos no núcleo duro da dor oculta e sem remédio, se convertem em oração. Erguem-se ao céu com redobrada energia e ardor. Especialmente quando não entendemos o por que de tanto suor, tantas lágrimas e tanto sangue na carne viva e ferida da história. Do ponto de vista pessoal ou coletivo, nem sempre as chagas cicatrizam. Pior ainda: tendem não raro a reabrir-se, expostas aos golpes imprevisíveis do destino. Sequer nos damos conta que Jesus também está na barca.
Jesus desperta e impõe sua autoridade sobre as forças tenebrosas e avassaladoras. Elas ameaçam fugir ao controle, transbordar do seu leito normal e destruir tudo que encontram pela frente, reconduzir à desordem primordial: “Cale-se! Acalme-se”! O Mestre acalma-os em seu furor, reorganiza-os e refaz a ordem, possibilitando o retorno ao curso livre e fecundo da vida. Impede que o caos possa prevalecer. Com a sua palavra realiza, assim, um ato criador, em meio às forças da violência e do mal que tudo parecem querer varrer e devastar. “Quem é este homem, a quem até o vento e mar obedecem?” – é a pergunta que surge espontânea!
Eis o poder criativo da oração contra as forças do mal. Quando imperam a injustiça, a exploração e a tirania, do ponto de vista socioeconômico e político, ou emergem os instintos, paixões e desejos egoístas e incontidos, do ponto de vista pessoal, é preciso despertar o Mestre. A oração como que toca as cordas mais sensíveis da misericórdia e da compaixão divinas. Se e quando soltas, as forças da natueza semeiam a desordem, nos reconduzem ao olho do furacão, onde tudo é noite, tormenta e tragédia. E onde não passamos de náufragos em braçadas vãs e desesperadas. Mas nenhum poder supera o amor daquele que é Pai/Mãe, e que envia seu Filho como um passageiro nesta embarcação grágil da história. Ao mesmo tempo, envolve-nos com a luz do Espírito Santo para que encontremos sempre o rumo da farol e do porto seguro.