Economia e Vida (IV): a boa intenção e o sistema
Jung Mo Sung
No artigo anterior eu afirmei que, diante do sistema econômico e social em que vivemos, a conversão pessoal é necessária, mas não suficiente. Também é preciso a conversão do mundo. O problema é que a “conversão do mundo” ou de “sistemas econômicos, sociais e políticos” requer lógicas muito diferentes das conversões ou transformações pessoais. Eu quero dedicar este artigo e os próximos sobre esse assunto.
Em primeiro lugar, é preciso ter claro que a conversão do mundo não deve ser entendida como a conversão de todas as pessoas que habitam o mundo. Ainda hoje, há muitas pessoas, grupos e Igrejas que pensam que levar o evangelho ao mundo ou proclamar a conversão ao mundo significa buscar a conversão pessoal de todas as pessoas. Isto é, pensam que o mundo nada mais é que a soma de todas as pessoas; que a sociedade é resultado da soma de todas das ações e atitudes de todas as pessoas. Assim sendo, a mudança das pessoas e de suas ações levaria a mudança no mundo.
Na verdade, o mundo e os sistemas econômicos e sociais são muito mais do que a soma das ações dos indivíduos. O conceito de “sistema” pressupõe que há algo além das ações individuais ou de grupos, que a vontade e ações bem intencionadas de indivíduos ou de agentes coletivos não são suficientes para produzir resultados desejados. Mesmo que esse indivíduo ou grupo tenha muito poder.
Esse tipo de equívoco é mais comum do que se imagina. Por exemplo, muitas das críticas feitas ao governo Lula, por parte da chamada “esquerda”, cristã ou não, pressupõe que ele não rompeu com o capitalismo ou não fez reformas sociais e políticas profundas por simples falta de vontade política. Como se a vontade política de um indivíduo ou grupo poderoso fosse suficiente para produzir os resultados sociais e políticos desejados.
Nós começamos a desconfiar ou reconhecer que existe algo que se chama “sistema” exatamente quando as nossas ações não produzem os efeitos desejados. As ações humanas são humanas na medida em que elas são intencionais, isto é, não são resultados meramente de impulsos determinados pelo nosso código genético. Todas ações produzem conseqüências. No caso das ações humanas intencionais produzem dois tipos de efeitos: os efeitos que estão de acordo com as intenções que moveram a ação (efeitos intencionais) e os que não estão de acordo (efeitos não-intencionais, que podem ser bons ou maus). No primeiro momento, pensamos que os efeitos não-intencionais são resultados da má execução da ação. Se o aperfeiçoamento da ação fizer desaparecer os efeitos não-intencionais, está provado que não há nada entre o sujeito da ação e os resultados esperados. Nesse caso, bastaria converter a pessoa e/ou aperfeiçoar a técnica da ação para obter as mudanças desejadas.
Mas, se mesmo o aperfeiçoamento da técnica da ação não evitar os efeitos não-intencionais, começamos a perceber que entre a ação e os resultados existe algo que interfere no processo. Esse algo tem a ver com o sistema. Começamos a perceber que as nossas ações se dão no interior de algum sistema. Um exemplo muito comum se dá quando, em uma conversação, as pessoas entendem equivocadamente o que queremos dizer. Nesses casos costumamos dizemos: “não foi isso que eu quis dizer!” A nossa intenção era comunicar uma mensagem bem intencionada que foi entendida de forma diferente da intenção e provocou, talvez, um mal-estar ou algo pior (um efeito não-intencional). No caso aqui, algo do sistema cultural e/ou do sistema de crenças e de pensamento das pessoas envolvidas interferiu na conversação e nos seus resultados.
Isto significa que não basta convencer todas as pessoas que precisamos de uma economia socialmente mais justa e ecologicamente sustentável. Também não é suficiente fazer as pessoas passarem do convencimento para mudanças nas suas ações e hábitos cotidianos. É claro que essas mudanças são necessárias e importantes, mas não são suficientes. Em uma sociedade escravagista, por ex., mesmo que todas as pessoas se convençam do mal da escravidão e os senhores passem a tratar melhor os seus escravos, o sistema permanece escravocrata. Se o sistema produtivo (economia) continua escravocrata e sem mão-de-obra livre, não há como um fazendeiro de boa intenção continuar sendo dono de fazenda e ao mesmo tempo libertar todos os escravos. Se ele efetivar a sua boa intenção, o resultado é que ele se tornará um ex-fazendeiro produtor.
Muito dos discursos em favor de um “outro mundo possível” centram fundamentalmente na tarefa de convencer as pessoas dessas necessidades. Mas, ao esquecerem ou não darem ênfase suficiente na necessidade paralela de mudança sistêmica, esses discursos acabam se tornando discursos moralistas, discursos que apelam somente para a consciência moral das pessoas. No campo dos problemas econômicos e sociais, boas intenções e consciência ética são importantes, mas não suficientes se não houver ações políticas que geram transformações no sistema sócio-econômico-político. (No próximo artigo, o sistema econômico e a divisão social do trabalho.)