Vida e Solidariedade
Manfredo Araújo de Oliveira
“Cada pessoa tem o direito fundamental à vida e, portanto, o direito a todas as coisas necessárias para uma vida de qualidade”: é desta forma que o documento da Campanha de Fraternidade deste ano exprime a exigência ética básica em relação à organização da economia. Esta postura, aliás, exprime muito bem do ponto de vista ético o próprio sentido etimológico da palavra grega “economia” que significa cuidado da casa, portanto, cuidado de seus habitantes. A análise de nossa situação histórica mostra que é precisamente esta vida dos habitantes da casa do Planeta Terra que está sendo negada a partir da forma como estão configuradas a produção, o consumo, o comércio,as finanças em nossas sociedades. Isto põe a exigência de busca de uma nova forma de organização social que esteja a serviço de todos os seres humanos, portanto, que coloque o ser humano e não o capital como sujeito e fim da atividade econômica.
O documento nos coloca diante de uma situação extremamente grave, mas que constitui ao mesmo tempo o ponto de partida da elaboração de um horizonte novo que deve orientar a construção deste mundo diferente:…”não há alternativa: ou vivemos solidariamente como irmãos ou seremos todos infelizes num mundo trágico”. Do ponto de vista do sentido que deve marcar atividade econômica isto desemboca na frase decisiva de Ghandi: “O teste da verdadeira organização de um país não é o número de milionários que possui, mas a ausência de fome em sua população”.
O documento exprime a consciência de que o esforço de construção deste mundo alternativo pode ser considerado em primeiro lugar um ato de contracultura no sentido da contraposição a uma forma de entender a vida humana e a atividade econômica marcadas por uma cultura “do enriquecimento com exploração, da acumulação que provoca a carência de muitas pessoas e do consumismo egoísta e materialista que coloca em risco a vida na Terra”. Trata-se, assim, de uma reação à cultura do Eu, do egoísmo, do individualismo como valores fundantes de nossa configuração societária.
O documento nos convida a avaliar a possibilidade e a nos engajar na construção da organização das relações dos seres humanos entre si e de suas relações com a natureza fundada em outras balizas: a solidariedade “que faz da humanidade uma família onde todos se protegem mutuamente” o que implica fundamentalmente a mudança do modelo de vida social vigente. O capitalismo transformou a competição no único modo de relação econômica. Subjacente a esta postura está uma concepção do ser humano que se entende basicamente como indivíduo de tal modo que o sentido das ações do ser humano no mundo é a busca de satisfação do interesse próprio de cada um. O bem comum se atinge na medida em que se respeita o automatismo dos mecanismos de mercado e das relações competitivas como instrumentos necessários à busca do lucro máximo. Nesta configuração da vida coletiva a liberdade deste indivíduo absoluto significa a negação e a indiferença frente à individualidade do outro o que M. Tatcher exprimiu com plena clareza com sua afirmação: “A sociedade não existe, a única realidade é o indivíduo”.
O documento pressupõe outra concepção de mundo que se exprime na afirmação de que o ser humano não é nunca uma subjetividade fechada em si mesma, indivíduo puro, que em primeiro lugar está em si mesmo e depois se dirige ao outro de si, mas é constitutivamente aberto ao grande todo, ao universo enquanto tal, portanto, abertura radical à alteridade. A primeira forma de alteridade toma a figura de natureza que enquanto tal é a base de toda vida pessoal e social. Ora o princípio de solidariedade implica o acolhimento e o respeito pelo outro em sua dignidade. A economia alternativa que corresponde, então, à constituição da vida humana é a da colaboração solidária e da autogestão com o objetivo de satisfazer as necessidades das pessoas e das comunidades.