A economia da insensatez
Celso Vicenzi
Não é raro ouvir de pessoa simples, quando questionada no comércio para a elaboração de um cadastro de loja: “Não moço, eu não trabalho. Só o meu marido”. Essa mulher – imaginemos – levanta-se quando ainda é noite, prepara o café para a família e a comida que o marido e os filhos levarão, para o trabalho e a escola, depois dá banho nos filhos pequenos, lava roupa, passa roupa, limpa a casa, cuida das crianças, vai à feira, cozinha; enfim, faz uma infinidade de tarefas que, se remuneradas, garantiriam um bom salário mensal. Afinal, compute-se aí, entre outros serviços: cozinheira, lavadeira, arrumadeira, passadeira, serviços gerais, babá, educadora etc. Mas, para a economia, isso tudo é ficção, é miragem, não existe, não é computado no PIB.
A economia se impõe no mundo com suas leis pouco transparentes, embora pretensamente científicas e corretas. Parece que o jogo funciona enquanto os ganhadores mantêm um acordo entre si e os perdedores acreditam que não melhoram de vida porque são ignorantes. Pobre conhece muito bem o desemprego, mas nunca sabe se ele é estrutural, friccional, keynesiano ou conjuntural. Pode estar aí a explicação porque ganha tão mal. Se soubesse de âncoras cambiais, taxas de câmbio flutuante e inflação inercial, certamente teria pouco a se queixar.
Há muito que os pobres desconfiam que há algo muito errado no mundo da economia. A começar por trocas injustas. Como explicar que cidadãos começam a trabalhar jovens na construção civil; erguem centenas de prédios luxuosos e quando se aposentam, já debilitados pelo peso de tanto cimento, ferro e tijolos, nunca ganharam o suficiente para uma moradia digna. Mal conseguem se equilibrar sobre barracos de madeira pendurados no morro, permanentemente expostos ao risco de desabamento.
A economia institui valores. Mas quem disse que o operário que ergue um prédio precisa ganhar muito, muito menos do que um arquiteto ou engenheiro que sabe projetá-lo ou calculá-lo? Tudo são convenções e poderiam ser diferentes do que são. Quanto tempo leva para uma pessoa que é explorada tomar consciência da sua exploração? Quanto tempo leva para uma pessoa que é beneficiada pelo sistema político e econômico tomar consciência da injustiça social? E, ao invés de exigir sempre mais vantagens, lutar para desfazê-las e reparti-las?
Nunca nos vemos como parte do problema. A miséria que se produz no planeta, nunca tem o nosso aval. Limitamo-nos a trabalhar, a ganhar -não raro- um bom dinheiro, e a olhar com espanto, como se produz tanta miséria. Quando os miseráveis querem o nosso fígado, além das nossas carteiras e relógios, damos a isso o nome de violência. A poucos ocorre chamar pelo mesmo nome o que se passa nos arredores da cidade que habitamos.
Com o tempo nos acostumamos a driblar os mendigos espalhados pelas vias públicas, a desviar dos pedintes, a não se sensibilizar com aqueles que moram embaixo de pontes e viadutos. Só pedimos às autoridades que nos protejam e se possível limpem esse lixo humano que se acumula nas calçadas.
Por que será que nos tornamos tão insensíveis? Por que nos enganamos com respostas como “não tem jeito”, “isso é um problema do governo”, “é gente que não quer trabalhar” e nunca nos interrogamos sobre as causas de todo esse desequilíbrio? Quase todos poderíamos fazer mais, muito mais – e não fazemos. Estamos sempre muito ocupados em ganhar mais, sempre mais.
Seria muito mais sensato e barato eliminar as causas da pobreza e da violência do que se proteger com grades, cães, câmeras, armas e todo um aparato cada vez mais caro e sofisticado. E a vida seria mais feliz, para todos. Por que não fazemos? Eis uma questão complexa.
Tem a ver com a política, com a economia, com a ética, com o tipo de pessoas que nos tornamos. Insensíveis. Algumas mais, outras menos.
Hoje, quando olhamos para o passado de escravidão de negros e índios, perguntamos: como isso foi possível? Afinal, aqui não viveram monstros, mas pessoas normais – até padres tiveram escravos e isso tudo parecia tão normal. Quando olhamos para o horror nazista, indagamos: como isso foi possível? Muitos dos que ajudaram a fazer funcionar a máquina de extermínio de 6 milhões de judeus eram pessoas que chegavam em casa, beijavam suas esposas, brincavam com os filhos. Liam livros, escutavam música clássica. Eram cidadãos de uma nação com elevado índice de civilização, de educação, de cultura.
Quando aqueles que nos sucederem, daqui a décadas ou séculos, olharem sobressaltados as estatísticas de tanta desigualdade, que produziu tantas mortes, tanta miséria e injustiça, perguntarão: “como isso foi possível?” Nós não estaremos mais aqui para responder. E nem precisaríamos, somos mesmo culpados.