Em que não crê quem crê em Deus
Marcelo Barros
Com um título parecido com este, (O que crê quem não crê), o Cardeal Carlo Martini, ex-arcebispo de Milão e o escritor Umberto Eco nos presentearam com um belo livro de diálogos sobre a fé, a dúvida e a descrença. De fato, estamos sempre desafiados a aprofundar este assunto, quando nos deparamos com certas posições de pessoas que não somente se dizem crentes, mas pretendem falar em nome de Deus.
Moscou ainda se recuperava dos violentos ataques terroristas que sofreu neste mês com dezenas de vítimas fatais e muitos feridos, quando, nos jornais, um pregador cristão fundamentalista declarou que aquilo aconteceu como castigo divino, porque a sociedade russa é cada vez mais alheia à fé e à moral cristã. Já o pastor norte-americano Pat Robertson afirmou à imprensa: “o terremoto do Haiti aconteceu porque, há 200 anos, os haitianos teriam feito um pacto com o diabo para obter o fim da dominação francesa. Agora, seus descendentes sofrem as conseqüências daquela aliança maléfica”. Racismos e discriminações sociais à parte, este tipo de teologia não existe apenas em ambientes pentecostais. Na Itália, na Semana Santa de 2009, um terremoto devastou a cidade de Áquila e seus arredores. A Rádio Maria divulgou a opinião de Lívio Gonzaga, líder católico carismático: “O Senhor quis que, nesta semana santa, os habitantes de Áquila participassem do seu sofrimento e sua paixãol” (6ª f., 10/04/ 2009).
Há quem use este mesmo tipo de pensamento para consolar uma mãe que chora a perda de um filho ou filha, arrancada da vida em plena infância: “Deus quis assim”, ou “foi a vontade de Deus”. Que Deus é esse que quer a morte de crianças inocentes? Recentemente, no Recife, em um sinal de trânsito, um táxi parou ao lado de um automóvel de luxo que tinha colado no vidro um adesivo: “Este carro foi presente de Deus”. O taxista reagiu: “Que Deus é este que te deu um presente tão caro e a tantos aí não dá nem o que comer?”. Lembrei-me do primeiro acidente da TAM. O fokker decolou de Congonhas e caiu perto da pista, matando 89 pessoas. Quando parentes das vítimas se acotovelavam no aeroporto a procurar, aflitos, notícias de seus entes queridos, apareceu um senhor que declarou tranquilamente: “Eu deveria tomar este avião, mas houve um engarrafamento no trânsito e cheguei atrasado. Deus me salvou!”. Salvou a ele e deixou morrer 89 pessoas…
A Bíblia é muito sábia ao insistir no mandamento que a tradição cristã traduziu como: “Não pronunciar o nome de Deus em vão”. Em cada celebração pascal, na renovação do batismo, a comunidade cristã é convidada a dizer em que Deus crê. Entretanto, para isso, deve antes deixar claro em que Deus não crê. É isso que significa hoje o que, em outros tempos, se denominava renunciar ao demônio e a suas obras. Hoje, mais do que nunca, somos chamados a rejeitar as falsas imagens de um Deus que dá êxito a poucos e despreza a maioria da massa humana. Não podemos crer em uma divindade com a qual podemos negociar. Deus não é tapa-buraco para resolver problemas e mistérios que, através da ciência ainda não conseguimos superar. Em 1943, de uma prisão nazista, em uma carta ao cunhado, Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo luterano, escreve: “Deus nos faz viver neste mundo, sem nos servirmos de sua presença. Durante todo o tempo, vivemos diante de Deus e com Deus, mas como se Deus não existisse. Não devemos nos utilizar dele como uma hipótese de trabalho. Desde que criou o mundo, ele deu a suas criaturas e ao ser humano a autonomia de existir. Aceitou se retirar e fica feliz quando nos vê como seres que podem viver e prosseguir por conta própria sem, para tudo, se esconder em seu manto” Cf. Resistência e Submissão).
Na mesma época, Simone Weil, intelectual e mística francesa, afirmava: “Eu sei quem é de Deus não quando me fala de Deus, mas pela forma como se relaciona com as outras pessoas e como orienta a sua vida”. Na Idade Média se conta de São Francisco de Assis que este se aproximava de Roma com alguns irmãos. Um mendigo se aproxima do grupo e pede comida. O irmão encarregado da bolsa responde que não tem nada, já que eles também estão vivendo de esmola. Francisco procura o irmão e lhe diz: Por que você não vende a Bíblia que temos para dar comida ao mendigo? O irmão responde: “Nós precisamos da única Bíblia que temos. Além disso, vender a Bíblia seria um sacrilégio”. Francisco retruca: “Como todo pai, Deus prefere que alimentemos um filho seu que está com fome. E não é certo que precisamos da Bíblia. Já a escutamos e as palavras do livro sagrado devem se transformar na pessoa que a lê ou escuta. Nós é que somos a Bíblia viva de Deus” (Cf. Os fioretti).