A água, o espírito e a nova criatura
Maria Clara Lucchetti Bingemer
O símbolo das águas primordiais presentes no caos primevo antes da fundação do mundo (Gn 1,1-2) é um dos mais fortes e evocativos para a linguagem da criação do mundo e da humanidade. Essas águas – ainda não separadas da terra, visibilizando a ordenação cósmica do Criador – são vivificadas pelo Espírito de Deus que paira sobre elas. Portanto, desde muito cedo o povo de Israel captou o símbolo da água como estreitamente ligado ao Espírito de Deus, que é Espírito de vida, que suscita as coisas que não são para que sejam e que, pairando sobre o caos primitivo, é como uma grande ave que “choca” o ovo do mundo antes que esse exploda em vida nas suas mais variadas formas.
Sendo imagem e semelhança do Deus Criador, o ser humano é chamado a ser cocriador juntamente com Deus. Assim como um espelho d’água reflete o céu, a consciência humana, o espírito humano reflete a ação criadora do homem no mundo. Se se turva algum dos elementos do cosmos – por exemplo, a limpidez das águas – fica turvo também o seu reflexo. Assim como a água representa simbolicamente o recanto inconsciente do espírito humano, onde as memórias rejeitadas são alojadas e a origem primordial dorme esquecida, nós – seres humanos – fizemos dela o depósito da impureza e da poluição que produzimos ao longo da nossa história.
Falta água limpa e salubre para aplacar nossa sede, falta consciência para zelar, preservar e despoluir nossas fontes e reservas de água de superfície e subterrânea. Mesmo nossas águas subterrâneas guardadas por milênios, conseguimos poluir. A poluição invisível das águas profundas – ainda mais grave e de difícil reversão – é a face escondida do quadro de degradação observada nas águas de superfície. E mesmo as chuvas que purificam as águas, em algumas regiões do planeta tornam-se ácidas como resultado da poluição do ar.
Neste caos em que estamos transformando o planeta e nele nossa vida perdemos primeiro o contato espiritual com a água e, posteriormente, perdemos o contato com o elemento físico da mesma água. Como contato espiritual entendemos a compreensão profunda da natureza simbólica da água. Pois a água é a matriz de todos os processos circulatórios, dotada de plasticidade, adaptabilidade a todos os espaços e relevos, elemento sensorial por excelência, meio privilegiado de trocas, misturas e encontros.
Diante da perda de contato com a dimensão simbólica e espiritual da água não é difícil perceber a razão pela qual a crise mundial espelha a crise de consciência da nossa civilização, que tem profundas raízes espirituais. Se não aceitamos o reflexo que a água nos devolve, nem a revelação das metáforas, não podemos recusar o que nos diz o nosso corpo, que contém em média 70% de água, nas mesmas proporções do circuito planetário. Dentro de nós circula o elemento líquido em artérias, veias e capilares de modo muito semelhante ao sistema de irrigação das bacias hidrográficas. Faltam critérios éticos e decisão política para cuidar das nossas águas, assim como da sobrevivência planetária: a degradação de gente e ambiente são verso e reverso da nossa inconsequente gestão da vida.
Revestir de cuidado os gestos cotidianos com que lidamos com a simbologia e a materialidade da água poderá reverter essa magia insana que irriga de morte o tecido da vida. Uma ética do cuidado, hoje defendida por tantos pensadores, e a estratégia ecológica dos três R (reutilizar, reciclar e reduzir o consumo) conseguirão, quem sabe, um dia, deter o avanço desse gigante moderno de mil tentáculos, de muitos nomes e nenhuma alma.
A revelação bíblica judaico-cristã pode ajudar-nos muito a refletir sobre essa ética e a afinidade simbólica entre água e espírito. Assim como no Antigo Testamento, no relato da criação, a água aparece ligada ao Espírito como fonte de vida, no Novo Testamento são muitas as passagens onde a ligação entre água e Espírito se faz igualmente visível.
Quando Jesus, cansado e com sede, chega ao poço de Jacó na Samaria, acontece uma das mais belas e profundas cenas bíblicas que o Evangelho de João, em seu capítulo 4, relata. Jesus, um hebreu, pede de beber a uma mulher samaritana. Esses povos não se entendiam e não se falavam. E um judeu piedoso não poderia dirigir a palavra a uma mulher gentia em espaço público. Porém, em torno da água – e da memória do comum pai Jacó – aquele judeu e aquela samaritana conversaram e acabaram por se entender. A água será a mediação do diálogo impossível. O fato de Jesus ter sede e pedir água faz com que a mulher aceite conversar. E o diálogo que começa tenso, vai se aprofundando.
Jesus oferece à mulher a água viva que jorra para a eternidade. A narrativa bíblica dá um salto qualitativo hermenêutico da água real para a água definitiva. A mulher pede dessa água para não ter mais sede e não precisar mais voltar a buscar água no poço. Mas depois sua preocupação vai se deslocar para um fato: aquele homem que lhe dirigira a palavra, quebrando a lei de seu povo, era igualmente capaz de ler em seu coração seu passado e seu presente. A água que jorra no coração da samaritana, mulher de seis maridos, será o Espírito do próprio Deus, que lhe revelará que aquele que lhe pediu humildemente de beber na verdade é o Messias esperado, o único que pode aplacar para sempre sua sede de vida.
O texto do evangelista João não diz se a mulher deu de sua água para Jesus, mas afirma que ela saiu espalhando sua fama pela cidade. A água, necessidade humana primária, que atingia também Jesus, faz-se um meio de anúncio do Espírito que jorra para a vida eterna e simboliza justamente a vida nova que Jesus vem oferecer a todos por meio de Seu Espírito. É o mesmo Jesus que proclamará: “Se alguém tiver sede, venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água viva.” Jo 7, 37-38. E o evangelista acrescenta: “Ele falava do Espírito que haviam de receber os que cressem nele”. Em todo aquele que escuta sua Palavra, o Espírito abre o livro da Revelação e faz acontecer a nova criatura, nascida da água e do Espírito.