A Igreja e a Bioética (I)
Alexandre Andrade Martins
Iniciamos a apresentação de um estudo sistemático sobre a relação entre a Igreja e a Bioética. Nesse estudo seguiremos o método ver – julgar -agir, com grande tradição e aplicação na América Latina. Para esse trabalho, recorremos a uma pesquisa bibliográfica na qual procuramos perceber como a bioética relaciona-se com Igreja Católica e como a bioética, dentro da Igreja, lida com os desafios presentes na sociedade que ameaçam a vida no planeta, sobretudo a vida humana.
Não ficaremos presos apenas na relação da Igreja com a bioética enquanto saber, mas avançaremos até o trabalho da Igreja na defesa da vida, ou seja, como a Igreja faz bioética, como ela lida com os temas da bioética. Com isso poderemos perceber quais as principais contribuições da Igreja à reflexão bioética, sobretudo na América Latina, em especial no Brasil (não pretendemos fazer um estudo de cunho mundial, pois estamos mais preocupados com a realidade na qual estamos inseridos, isto é, a realidade latino-americana), os principais conflitos existentes entre a Igreja e reflexões bioéticas laicas e seculares, que estão presentes na relação entre a moral católica e os avanços técnico-científicos e, por fim perceber se a Igreja precisa ou não se abrir mais para um diálogo no qual coloque suas posições tradicionais em um diálogo mais direto com a sociedade.
Temos uma hipótese ao iniciarmos esse trabalho: a Igreja tem contribuído à reflexão bioética na América Latina e pode contribuir mais se tiver a coragem de colocar sua doutrina tradicional num debate intersubjetivo com a sociedade moderna e seus avanços técnicos científicos. Veremos ao fim dessa pesquisa se comprovamos ou não nossa hipótese, algo importante de ser apresentado para termos um norte na nossa pesquisa e assim, quando concluirmos, podermos oferecer uma contribuição à Igreja Católica e à sociedade.
Feita essa pequena introdução, damos o primeiro passo ao apresentarmos o ver da nossa pesquisa. Um passo fundamental, pois será a partir dele que iremos desenvolver toda nossa reflexão posterior. O ver fornece a matéria prima para nosso estudo.
A Igreja Católica sempre se preocupou com a defesa da vida, essa bandeira está no centro da sua pregação ao anunciar Jesus Cristo vivo, ressuscitado. Defender a vida estava no centro da ação e da pregação de Jesus, isso é muito claro nos Evangelhos: eu vim para que todos tenham vida e vida em plenitude (Jo 10,10). Jesus não mediu esforços para resgatar a dignidade das pessoas excluídas, pobres e sofredoras. Quando curava alguém, Jesus não estava simplesmente extirpando uma doença, mas estava devolvendo a pessoa o seu direito a ter uma vida digna, estava reinserindo-a na sociedade que, marcada por poderes opressores, a excluiu. Muitos exemplos podiam ser citados, mas ficamos apenas com um: Jesus cura a hemorroíssa (Mc 5, 25-35). Uma mulher com fluxo sangüíneo, que a levou a ser tida como pecadora-impura, portanto foi excluída e levada a pobreza, pois gastou todos seus para se tratar e nada obteve de resultado. No texto até os discípulos tanta evitar que ela chegue até o Mestre, pois eles ainda estavam dominados pelo preconceito. Jesus percebe a fé dessa mulher acolhe-a com todo amor e ternura, talvez uma acolhida que ela nunca tivera, pois certamente era vista como a impura (é possível imaginar pessoas dizendo: lá vai a impura e pecadora!! Está assim porque não foi fiel a Lei!! Está vendo: pecou tanto e agora está pagando por isso!! Não chague perto dela, pois pode ficar impuro também, é melhor bani-la do nosso meio!). Jesus ver a pessoa como ela é, um ser dotado de dignidade intrínseca, amada por Deus sempre. Ele a cura pela força da fé dela e, assim, resgata a dignidade da sua vida e a insere novamente no convívio social. Jesus é o primeiro e o maior defensor da vida, defende e promove-a pelo amor, esse é o seu mandamento, que pede para seus seguidores viverem, ou seja, pede para toda a Igreja defender e promover a vida digna pelo amor.
Quando a Igreja brasileira apresenta a defesa da vida numa Campanha da Fraternidade (como em 2008), ela está apenas tornando explícito aquilo que sempre fez e chamando a atenção para esse debate, pois a vida está cada vez mais ameaçada. Por essa missão da Igreja, percebemos, sem dizer muitas palavras, a relação íntima entre Igreja e bioética. Podemos questionar sobre o como a Igreja faz para defender a vida, se ela está sendo fiel ao ensino do Mestre Jesus e ao sopro do Espírito, que fornece o discernimento da história. Questões que enfrentaremos adiante nesse trabalho, pois pertence a pontos cruciais da relação entre Igreja e Bioética.
A bioética também tem como bandeira a defesa da vida, isso está implícito no seu próprio nome: bio – ética, isto é, ética da vida. Todas as reflexões da bioética, que como saber organizado tem pouco mais de trinta anos, estão voltadas para a defesa da vida com dignidade do ser humano e, nos últimos anos, em virtude da destruição da natureza, a Gaia – casa comum de todos os seres vivos, com a sobrevivência de todos os seres habitantes do Planeta Terra. Tudo na Gaia está interligado. Para defender a vida do homem é preciso defender a preservação e o equilíbrio da natureza, pois sem ela não sobrevivemos.
Os famosos princípios da bioética: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça visão defender a vida digna de todo e qualquer ser humano. Esses princípios surgiram a partir dos grandes abusos das pesquisas científicas envolvendo seres vivos e das atrocidades da II Guerra mundial. Seus principais sistematizadores foram Beauchamp e Childress. Esses princípios nasceram num contexto de primeiro mundo (EUA e Europa) e vieram para o terceiro mundo (América Latina e África), onde foram aceitos por muitos sem grandes questionamentos no primeiro momento, mas hoje percebe que são insuficientes diante da grande situação de injustiça, desigualdade, exploração, opressão e pobreza existentes no terceiro mundo. Desse modo, a reflexão bioética na América Latina começa a sair da petrificação na esfera do principialismo para poder pensar nas ameaças que a vida sofre no contexto social de pobreza e injustiça. Defender à vida é a missão da bioética, mas como ela faz isso extra-igreja, também podemos questionar, tendo presente que a bioética não tem uma voz oficial como a Igreja e, sim, deferentes linhas de pensamento (entre elas o próprio pensamento da Igreja).
Defender a vida é o ponto de convergência entre Igreja e bioética e no como é feita essa defesa que temos uma situação complexa na relação entre as duas, pois no como, temos pontos comuns e pontos divergentes. Fica difícil falar sobre a relação entre a Igreja e a bioética de modo genérico, seria melhor dizer a relação entre a Igreja e as deferentes linhas de pensamentos bioéticos e, aí, o universo a ser explorado torna-se muito mais complexo e desafiador, porém mais preciso e responsável.
Toda reflexão bioética da Igreja é realizada a partir da moral católica, que tem por base a vida prática cristã com base no Evangelho. A moral católica em tese é uma reflexão que visa orientar a vida do cristão a partir do Evangelho. A bioética vem como um desdobramento, voltado diretamente à defesa da vida e sua dignidade frente os avanços técnicos-científicos ligados ao mundo da saúde. Os maiores pensadores sobre bioética da Igreja são formados em Teologia Moral e não em bioética. Isso vale tanto para o Brasil como para o restante do mundo católico. Pouquíssimos tem formação na área da saúde, que permite uma grande proximidade dos dilemas bioéticos. No Brasil nomes importantes da Igreja sobre a Bioética como: Dr. Pe. Márcio Fabri dos Anjos; Dr. Pe. Antônio Moser; Dr. Pe. Nilo Agostini; Dr. Pe. Roque Jungues são doutores em Teologia Moral ou Ética Teológica. Assim segue a maioria dos grandes nomes da bioética da Igreja Católica, salvo algumas exceções como o Dr. Pe. Léo Pessini, que tem formação na área da saúde em Pastoral Clínica nos EUA e em seu doutorado, apesar de ser em Teologia Moral, defendeu uma tese sobre distanásia (única obra sobre esse tema no Brasil) e o Dr. Pe. Christian de Paul Barchifontaine, que tem formação em Enfermagem.
Pelo lado laico, os grandes nomes da bioética vêm do mundo da saúde e da filosofia (mas dessa área são muito poucos). Na sua grande maioria são médicos. Essa formação permite um contato maior com os problemas bioéticos, pois a sua maioria estão ligados ao mundo da saúde. Entre esses nomes, citamos: Dr. José Eduardo de Siqueira, Dr. Marco Segre, Dr. Willian Saad Hassne e Dr. Maria Clara Albuquerque, médicos; Dr. Volnei Garrafa, odontologista; Dr. Elma Zoboli, enfermeira; Franklin Leopoldo e Silva, filósofo. Muitos fizeram seu doutorado em bioética fora do país (no Brasil ainda não existe). Temos o caso de pensadores da bioética desse campo que militaram pela Reforma da Saúde no Brasil e pelo SUS, como o Dr. Paulo A de Carvalho Forte, médico pediatra sanitarista e a Dr. Elma, já citada, entre outros.
Comparando os pensadores da Igreja voltados para os problemas bioéticos e o do universo laico, percebemos que a formação do bioeticistas do mundo laico está bem à frente dos da Igreja Católica. Apenas de uns anos para cá, não ultrapassando 10 anos, a Igreja começa a se preocupar em preparar e formar pessoas competentes para entrar no debate bioético, mas algo ainda muito tímido e precário. Quem mais investe nessa área são as Congregações religiosas, em especial a Ordem dos Camilianos, que há muito tempo vem trabalhando sobre esse tema e há quatro anos abriu um curso de mestrado em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo, único no país no nível stricto sensu. Esse mestrado tem prestado um grande serviço à Igreja com pesquisas na área de bioética, nas quais muitas foram e são feitas por padres e religiosos e também por leigos católicos atuantes na Igreja. A Igreja em textos oficiais tem falado da importância de ter pessoas com formação especializada em bioética e de se estudar esse saber, prova disso é o texto da Campanha da Fraternidade 2008, que insiste na necessidade dessa formação, e a maioria das faculdades de teologia, que tem a cadeira bioética nas suas grades curriculares.
A relação da Igreja com a bioética é meio tensa, isso se presta muito ao fechamento que a Igreja tem em relação a algumas questões. A Igreja se preocupa muito com os problemas ligados à bioética e dentro da discussão acadêmica a reflexão é muito livre e profunda, porém quanto é para dizer algo ‘oficial’ para a sociedade, essas discussões dificilmente saem da academia e continua o velho repetir da doutrina com base na tradicional teologia moral, ou seja, reafirma o que sempre afirmou do mesmo modo e com a mesma tonalidade de outrora. Com isso, percebemos um grande fosso entre a reflexão dos pensadores da Igreja Católica (vale destacar que nem todos) e o que os representantes ordinários da Igreja apresentam para a sociedade. Não se pode generalizar afirmando: a Igreja em todos os temas repete o que falava desde a Idade média (nem tudo está superado). Defender uma dessas duas pontas não condiz com a realidade. Percebemos que a Igreja em temas mais polêmicos permanece presa na doutrina moral cristã tradicional (mesmo existindo profundo debate e estudo em ambientes acadêmicos), mas em alguns temas, ela é mais aberta e fez algumas pontes importantes para a bioética contribuir com toda a sociedade.
A reflexão bioética fora da Igreja católica tem um debate muito mais aberto e franco, porém está restrito a um meio privilegiado da sociedade e pouco chega realmente ao grande povo. Aqui existem inúmeras tendências, desde as mais fechadas aos avanços técnicos-científicos até as mais abertas, que absolutizam a ciência e pouco se preocupam com a sociedade. De forma geral todas estão preocupadas com a vida do homem, mas muitas vêem uma vida idealizada, pouco ligada à realidade concreta do nosso continente, marcado pela desigualdade e pela pobreza (como se discutisse sexo dos anjos, enquanto seres humanos morrem de fome).
A Igreja precisa dialogar com todas as tendências laicas da bioética. Percebemos certa dificuldade em fazer esse diálogo, pois a Igreja chega com seu pacote pronto e não deseja abri-lo para debater, por outro lado, acontece o mesmo com algumas tendências da bioética extra-igreja (não seria exagero dizer que em algumas linhas da bioética também tem seus dogmas, desdobramentos de alguns dogmas das ciências empíricas). Assim percebemos um não avanço nas discussões em alguns temas como a questão das pesquisas com células-tronco. O debate fica truncado, cada posição fechada do seu lado atrás da sua trincheira, até saí uma decisão do poder legislativo feita sobre pressão e com pouca reflexão. Quem perde com isso é toda a sociedade, que além de não receber formação para participar do debate pouco sabe das implicações das decisões nesse campo.
Existem também momentos de uma frutuosa relação entre Igreja e bioética. A Igreja alerta para tomar cuidado com algumas decisões ligadas à bioética, isso faz os pensadores desse campo refletirem mais profundamente sobre os dilemas, conseqüentemente faz as ciências as saúde preocuparem mais ética no desenvolvimento das suas pesquisas e na aplicação de novos saberes.
Na América Latina a Igreja deu uma enorme contribuição à bioética no que diz respeito aos problemas sociais. Como falamos no início, a bioética veio do primeiro mundo, trouxe o padrão principialista e foi muito aceito até perceberem sua insuficiência numa realidade marcada pela desigualdade social, pela pobreza e pela exclusão. Foi a Igreja, pela reflexão da Teologia da Libertação, que mostrou à bioética a necessidade de se preocupar com os problemas sociais. A opção preferencial pelos pobres mostrou à bioética que para defender a vida é preciso, antes de tudo, devolver a vida àqueles excluídos dela. Não adianta ficar debatendo tanto sobre a questão do Genoma Humano e os possíveis bens ao homem no tratamento de doenças, pois será algo muito caro, pouquíssimos terão acesso no mundo subdesenvolvido e tudo ainda está no nível da promessa, enquanto crianças morrem por desnutrição, doentes passam horas e até dias em filas de hospitais (muitos chegam a morrerem), pessoas morrem de fome e não há saneamento básico mínimo para a maioria da população brasileira. A Teologia da Libertação alertou para esses problemas e a necessidade agir contra eles. Com muito custo, a bioética começa a acordar para defender a vida nessa instância da realidade latino-americana. Dessa troca de contribuições brotaram reflexões bioéticas que buscam uma bioética latinoamericana com matizes próprias (mesmo com um certa timidez, pois estamos em plena efervescência do pensar bioética para nossa realidade). Nesse trabalho alguns teólogos da Igreja têm contribuído muito como o Márcio Fabri e o Léo Pessini, já citados, e outros não ligados diretamente a bioética, mas grandes pensadores da Teologia da Libertação e defensores da opção preferencial pelos pobres como Leonardo Boff, D. Pedro Casaldáliga, D. Luciano M. de Almeida, Jon Sobrino, entre outros.
Para fechar essa primeira parte, podemos concluir resumido em sete pontos: 1- a Igreja preocupa-se com os problemas bioéticos; 2- ela tem uma reflexão bioética muito aberta no âmbito da academia, mas insiste em repetir seu pensamento tradicional à sociedade quando fala oficialmente; 3- ainda permanece fechada em algumas questões; 4- tem uma relação tensa com a reflexão bioética feita por pensadores extra-igreja; 5- vai muito fechada para o debate bioético, assim como algumas tendências de pensar bioética também vêm fechadas para ouvir o pensamento da Igreja; 6- contribui na reflexão bioética no que diz respeito à prudência; 7- a reflexão teológica da Igreja latino-americana foi uma das grandes responsáveis, por meio da Teologia da Libertação e a opção preferencial pelos pobres, de mostrar a necessidade da pensar uma bioética voltada para os problemas da América Latina e não ficar apenas no principialismo.