A negritude e a liberdade
Marcelo Barros *
Enquanto o mundo inteiro comemora a chegada do primeiro negro ao posto de presidente dos Estados Unidos e muitos refletem sobre as conseqüências disso para a América do Norte e para o mundo, o Brasil recorda a figura de Zumbi, líder negro do Quilombo dos Palmares, assassinado no dia 20 de novembro de 1697. Ele teve a sua cabeça exposta em um poste, numa praça do Recife, para que ninguém mais ousasse liderar um quilombo ou pretendesse ajudar os escravos a serem livres. Ao invés de pôr fim às lutas pela liberdade, a morte de Zumbi, ao contrário, suscitou da parte de muitos escravos a consciência de que não poderiam deixar que a morte desse grande chefe fosse inútil. A memória do seu martírio se tornou incentivo para que negros, índios e brancos se unissem em torno de um projeto de igualdade humana e de um Estado cujas raças e etnias pudessem ser cidadãs de pleno direito. Até hoje, esta democracia racial plena não é um direito adquirido. No Brasil, as pessoas de raça negra ainda têm menos condições de acesso à educação, ao trabalho remunerado e à plena cidadania. E não só isso. José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, afirma: “A cor negra da pele de homens e mulheres, assim como sua raça e cultura próprias, foram motivos de crueldade humana e de barbárie que mancharam e continuam manchando a dignidade da humanidade” (Carta Capital, 12/11/2008,p. 60).
Apesar das muitas repressões ao povo negro e da imensa capacidade dos seres humanos de reinventar formas variadas de escravidão, mais de três séculos depois, o Brasil continua cheio de quilombos e comemora este 20 de novembro como o dia nacional da união e consciência negra. Em um Brasil multicultural e pluralista, a maioria da população tem influência das culturas negras que formaram com outras expressões culturais o variado tecido da brasilidade. Neste conjunto, sem dúvida, o povo afro-descendente tem uma função própria. Ele vem de populações que, mesmo nas condições mais adversas e na pobreza mais extrema sabe dançar a vida e expressar alegria e confiança. Quem não precisa disso? Como garantir que os filhos e filhas das culturas afrodescendentes possam cumprir sua missão própria no conjunto da sociedade brasileira?
Nos Estados Unidos, a cada ano se lembra a memória do pastor Martin-Luther King, mártir da igualdade racial e do direito das minorias negras. Vários analistas salientaram que a celebração anual do aniversário do reverendo Luther King ajudou muito a que os cidadãos norte-americanos descobrissem que era possível eleger um negro como presidente do país.
No Brasil, muitos setores da sociedade, vítimas do racismo disfarçado e gentil que se esconde sob o véu da democracia racial, não vê com simpatia esta luta. O próprio assunto de culturas afrodescendentes os assustam. É preciso repetir a estes companheiros que a celebração de um dia da “união e consciência negra” nada tem a ver com exaltação racial ou com supremacia de uma cultura, menos ainda com revanchismo ou revolta. Ao contrário, é proposta pedagógica e litúrgica de diálogo e integração. Em várias cidades, como no Rio de Janeiro, Salvador, Maceió e Recife, que tornaram o 20 de novembro feriado municipal, a educação da juventude e o ambiente de convivência social têm progredido na direção da justiça.
Em Goiânia, por iniciativa do vereador Sérgio Alberto Dias, o Serjão, que tem se dedicado à causa da igualdade racial, a Câmara Municipal de Goiânia aprovou o projeto de lei 434 de 13 de novembro de 2007 que institui o dia 20 de novembro como feriado municipal também em Goiânia. Agora este projeto só depende da assinatura do prefeito que, esperamos, não tarde.
As cidades de Goiás, Pirenópolis e outros núcleos de colonização do Centro-oeste ainda guardam muros de pedra, construídos pelos escravos. Até pouco tempo, os garimpos eram mantidos por trabalhadores negros. Apesar de, aparentemente, guardar menos traços da cultura negra do que o Nordeste e alguns Estados do litoral, o Centro-Oeste, ao contrário, tem uma grave dívida social e moral com relação à população negra, libertada da escravidão e posta na rua, sem indenização, nem condições para se integrar social e economicamente na sociedade brasileira. As Igrejas cristãs, muitas vezes ou quase sempre, cúmplices da crueldade da escravidão, discriminaram as culturas negras e demonizaram suas religiões ancestrais.
Ainda bem que Deus é amor e não tem os mesmos preconceitos. Seu Espírito sopra onde quer e abraça todas as culturas. Por isso, Deus veio sempre encontrar seus filhos e filhas dos quilombos e terreiros. Num mundo sem esperança e consolação, eles se tornam para toda a humanidade, testemunhas de que Deus é ternura e beleza. Viva o dia da união e consciência negra!
* Monge beneditino e escritor