O cristianismo – Religião de escravos?

A propósito da crítica de Bento XVI a Nietzche

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Não foi a primeira vez que o Papa citou Nietzsche, coisa que até então os Papas em geral não faziam. Convenhamos que é um progresso. Dialogar intelectualmente, ainda que criticamente, com um filósofo anticristão e ateu como é Nietzsche e que teve tal influencia no Ocidente cristão, demonstra liberdade de espírito e segurança intelectual.

Em sua primeira encíclica, “Deus caritas est”, Bento XVI interroga, no n. 3: “Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. [1] Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?”

Interrogação pertinente. Quantas vezes já não teremos ouvido essa pergunta a nós feita por nosso coração em suspeita e por outros que questionavam nossa fé. Seria o cristianismo uma religião dolorista, que não conhece e não legitima a alegria? Seria uma deformante e doentia tentativa de erodir a pulsão de vida da humanidade para transformá-la em rebanho dócil, massa de manobra, povo de escravos?

Durante a Missa Crismal da última Quinta-Feira Santa, durante a qual abençoou os santos óleos e em cuja homilia advertiu contra a visão que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche tinha da liberdade absoluta do homem – que, segundo o papa, “leva à soberba destrutiva e à violência”, Bento XVI retomou sua reflexão.

O contexto era propício. Tratava-se da celebração que abre o Triduo Pascal, com a re-memoração da Ultima Ceia e da instituição da Eucaristia, quando se consagram os óleos litúrgicos que servirão durante o ano seguinte para a unção dos fiéis e os sacramentos e os sascerdotes presentes renovam suas promessas, entre elas a da vivencia da castidade em estado de celibato. Sabemos que este é um ponto muito delicado no debate hodierno sobre a vida eclesial.

Usando Nietzche de contraponto, Bento XVI destacou o que significa ser sacerdote: entregar-se a Deus, representar e interceder pelos outros, em um modo de unificação com Cristo, renunciando a impor a vontade própria. Acrescentou que o sacerdócio não significa “segregação” e que os padres devem saber dizer “não” às opiniões nas quais “predomine a mentira”.

Referiu-se então a Nietzsche, que, segundo o pontífice, “zombou da humildade e da obediência e as considerou como virtudes servis, que reprimem os homens. Colocou em seu lugar a dignidade e a liberdade absoluta do homem”. Ora, comentou o Papa, “existe realmente uma caricatura de uma humildade e de uma submissão equivocada que não queremos imitar, mas existe também uma soberba destrutiva e uma jactância que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência”.

Foi este o ponto que Nietzche não captou. Há situações onde o ser humano tem que escolher entre matar ou morrer; entre dar a vida ou tomá-la usando outros como degraus; entre fazer ou sofrer violencia. É então que o amor toma seu pulso e pode dar toda a sua medida.

O Evangelho de Jesus Cristo jamais nos proclamou escravos. Pelo contrário, não faz outra coisa senão dizer que Deus nos libertou e nos liberta em Cristo. Porém essa liberdade não é para ser gozada impunemente, e sim para amar servindo aos outros de todo coração, humildemente e repudiando qualquer violencia. É assim que na história do cristianismo, os homens e mulheres que mais serviram e transformaram a história de seu tempo foram também os que mais experimentaram o amor de Deus. Esquecidos de si mesmos, lançaram-se no serviço aos outros, ansiosos em expressar no serviço todo o amor recebido de seu Criador e Senhor.

É neste ponto crucial que se dá toda a diferença na concepção que se tem do amor. Simone Weil, judia agnóstica apaixonada pelos pobres, após um ano de trabalho nas fábricas, vai a Portugal e assiste a uma procissão de pescadores em Povoa do Varzim. Ao escutar os cantos que não entendia mas dos quais sentia a lancinante tristeza, sua vida mudou para sempre. “Compreendi que o cristianismo é a religião dos escravos, que os escravos não podem não aderir a ele, e eu entre eles.”

Livremente escolher viver a serviço dos outros, é isso que Nietzche chama de religião dos escravos. É verdade que vai na contramão do que o mundo pensa e ensina. Mas quem disse que é fácil viver o Evangelho? Quem disse que a Boa Nova é o mesmo que um doce a ser saboreado impunemente?

É aí que Nietzche chorou – parodiando o título de best seller recente – ao ficar na superfície das coisas e não chegar à raiz da moral, como pretendia. É aí que aqueles que seguem a Jesus de Nazaré devem muitas vezes passar por loucos diante do mundo. Não se trata de escolher entre o Papa ou Nietzche. Trata-se de compreender que se trata de um debate com um dos mestres intelectuais de nossa época. E que a razão, a um determinado ponto, deve ajoelhar-se diante do mistério que não compreende.
Boa reflexão para o tempo pascal…resistindo à tentação da simplificação.

5 Comentários

  1. Julio Lancellotti
    maio 02, 2009 @ 23:35:47

    um texto como este é um brinde à inteligência do amor .Faz lembrar de D.Luciano , D.Helder , D Oscar Romero , Madre Tereza e outros santos de ontem e de hoje !

  2. Lilian
    maio 02, 2009 @ 23:52:19

    Ah, Maria Clara… sempre provocando a reflexão.

    Mais uma vez parabéns ao editor…
    Abraços,
    Lilian

  3. Solange
    maio 02, 2009 @ 23:52:42

    Realmente esse texto é muito inteligente. Bom texto para uma reflexão. Paz e Amor á todos

  4. Angela Maria Gonçalves dos Ramos
    maio 03, 2009 @ 14:25:01

    Parabéns pela excelente e profunda reflexão, um texto imparcial que nos remete a conhecer as angústias humanas de Nietzche e nos afirmarmos cada vez mais na nossa fé.

    Forte abraço,

  5. Noeli T Leo
    maio 03, 2009 @ 15:29:04

    Muito bom! Temos que ler várias vezes, cada leitura um momento de reflexão.
    Parabéns a equipe do OArcanjo.

    Noeli