A tragédia do feminicídio
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
A emergência e o uso da palavra – feminicídio – constitui um sinal dos tempos em que vivemos. Não se trata apenas de machismo, um conceito, ao qual nos referimos em voz baixa, como se fosse coisa do passado. Fazemos o mesmo, aliás, com o racismo e outros estigmas do gênero. Navegamos à superfície das águas nos acontecimentos do dia-a- dia, com medo de mergulhar o toque e o olhar, as dúvidas e as perguntas, as inquietações e consequências nas correntes mais profundas do tecido social. Ali, nos repele e assusta um mundo selvagem e desconhecido.
O machismo, como sabemos, está forte e graniticamente ancorado na sociedade patriarcal desde os tempos antigos e medievais. Um resíduo de um comportamento desequilibrado e, no fundo, duvidoso e temeroso da virilidade do homem-macho. Grita-se e levanta-se o punho para espantar o medo, a fraqueza, e a debilidade ocultas. O grito, neste caso, é sinal da falta de razão. O machismo representa a negação do próprio conceito de homem, como companheiro e parceiro da mulher. O pior é que, nesse “jogo de forças”, a violência sobretudo doméstica costuma abater-se sobre as pessoas que nos são mais vizinhas, vitimando em particular mulheres e crianças.
Dois exemplos nos bastam. Na Itália, desde o início de 2016, cerca de 50 mulheres (namoradas, noivas, esposas, parceiras ou “ex”) foram assassinadas por seus companheiros de vida. Não raro o são de forma cega e bárbara, onde a violência gratuita adquire uma face extremamente feroz, brutal e sombria. No Brasil, recentemente, o tema do estupro ocupou espaço privilegiado nos principais noticiários, com uma série de manifestações em favor das mulheres. O que assusta é que o início de uma relação, por mais passageira que seja, parece dar ao homem o direito de posse sobre a mulher, condenando esta última a uma submissão absoluta. A tal ponto que a companheira se vê numa gaiola sem saída, trancada pelo parceiro dentro de casa, como na famigerada lenda do joão-de-barro. Vem à tona o velho humor sombrio: “se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”.
Duas observações e um desafio se impõem com urgência. A primeira observação tem a ver com a banalização do amor. Em lugar de buscar uma companheira para construir juntos um projeto de vida, muitas vezes o que está em jogo é uma espécie de experimento, tantas vezes de caráter superficial e provisório, o qual pode ter início (ou não) através das redes sociais. Disso resulta não raro o uso e abuso da pessoa “amada”, seguido de um descarte puro e simples, quando “o relacionamento não me interessa mais”. No meio do caminho, entretanto, o processo de aproximação pode assumir uma dimensão pegajosa e doentia, tortuosa e mórbida – de uma possessão patológica. Neste caso, não estamos longe da tragédia, onde a vítima na grande maioria dos casos será a mulher. Mas é bom não esquecer que o mesmo pode ocorrer com casais de longa sobrevivência em comum.
A segunda observação se refere à banalização da violência. O número de golpes, os requintes da tortura, as marcas pelo corpo, a queima ou ocultação do mesmo – tudo isso faz pensar na regressão à barbárie nas ligações interpessoais mais íntimas. Não tenho a competência nem o espaço para me deter sobre a história das relações amorosas. Mas tudo indica que, ao abrigo das quatro paredes, escondem-se resíduos primordiais, perigosos e animalescos (com todo respeito pelos animais), seja no convívio distorcido no interior de tantas famílias, seja no encontro eu-tu.
O desafio nos questiona e interpela a todos e todas, mas de forma toda particular os homens. Quem somos? Em que nos estamos tornando? Qual nossa identidade no confronto com a mulher? Ou, pior ainda, o que está emergindo do fundo de nossas entranhas mais ocultas? Enfim, não estaria na hora de governos, igrejas, instituições, movimentos populares, organizações governamentais, entre outros atores, levantarem a voz contra tais crimes hediondos?