Alegria do Evangelho
Cardeal Odilo Pedro Scherer
No dia 24 de novembro passado, o papa Francisco entregou à Igreja sua exortação apostólica Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho. Diversamente de uma encíclica, dirigida de maneira aberta a todos, a exortação apostólica é uma diretriz vigorosa sobre determinado tema, dirigida aos membros da própria Igreja.
Nesta sua primeira exortação apostólica, Francisco trata do anúncio do Evangelho no mundo atual, tema relacionado estreitamente com a assembleia do Sínodo dos Bispos, de outubro de 2012, sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. O Papa expõe as intuições e preocupações levantadas no Sínodo de 2012, fundidas com a sua pessoal percepção e orientação sobre as questões relacionadas com o tema.
A principal missão da Igreja de Cristo, de fato, é anunciar o Evangelho, ou “evangelizar”; ela o faz, quer pela pregação explícita e a celebração dos sacramentos, quer pelo testemunho de vida dos seus membros, quer ainda pelas obras que realiza no meio da comunidade humana nos âmbitos da saúde, da educação, da assistência social e da promoção da justiça e da dignidade humana. “A Igreja existe para evangelizar”, já afirmava o papa Paulo VI na exortação apostólica – Evangelii Nuntiandi (1975) -, sempre recordada quando se trata do assunto.
Se bem que a Igreja nunca tenha deixado de evangelizar ao longo de toda a sua história quase bimilenar, ela não o fez sempre do mesmo modo. O conteúdo é o mesmo, mas o jeito mudou, com novos enfoques e destaques, dependendo das circunstâncias e necessidades. Mais de uma vez, a Igreja precisou enfrentar o risco da desmotivação e do cansaço, de perplexidades resultantes de situações momentâneas, ou de crises, que ela teve que enfrentar com ânimo renovado. Hoje não é diferente.
Esta é a questão posta na exortação Evangelii Gaudium. Antes de tudo, Francisco exorta a Igreja que ela não pode esquecer nem abdicar de sua identidade missionária. O Evangelho, que lhe foi confiado pelo seu Fundador, é um dom para o mundo todo, que ela não deve reter apenas para si mesma, nem, muito menos, esconder para não ser contaminado com as realidades do mundo. A Igreja não existe em função de si mesma, nem pode fechar-se sobre si mesma; por sua própria natureza, ela precisa estar em “atitude de saída”, em estado de missão.
Por isso, Francisco chama os membros da comunidade eclesial a se voltarem para essa identidade missionária. Isso demanda a superação de certa tendência à introversão eclesial e a renovação de convicções e atitudes, “a partir do coração do Evangelho”. Há tentações a serem evitadas, como o desânimo, a acomodação à mentalidade individualista, que faz perder a força dinâmica do anúncio do Evangelho; há também a tentação de transformar a religião em praça de consumo ou em fonte de lucro, de poder e vanglória.
O “mundanismo”, processo sutil de assimilação da Igreja e de sua pregação originária ao ambiente, foi um risco já advertido por São Paulo no início do cristianismo – “não vos conformeis com este mundo!” – e recorrente em toda a história da Igreja. “Não tenham medo de ir contra a corrente”, convidou Francisco com insistência aos milhões de jovens reunidos na orla de Copacabana em julho passado. E isso, não por uma perfeição já alcançada, mas por se ter uma meta alta para a existência humana e um caminho para alcançá-la, que requerem escolhas lúcidas e corajosas.
O Papa exorta todos os membros da comunidade eclesial a fazerem sua parte na evangelização, que não pode ser relegada apenas para poucos e heroicos mensageiros. Há “deveres de casa” que não podem ser repassados simplesmente aos outros. Mas o Papa não deixa de dirigir uma palavra especial aos que devem fazer a homilia, a pregação feita dentro da celebração litúrgica. Essa tem um papel inegável na transmissão e no cultivo da fé cristã.
A dimensão social da evangelização deve receber uma atenção renovada, para que o Evangelho alcance todos os âmbitos da vida social e comunitária; sem isso, ele seria como o sal ou o fermento que permanecem na prateleira, não produzindo efeito algum. As convicções da fé cristã não dizem respeito apenas à vida privada, mas trazem consigo uma visão própria sobre as realidades do homem e do mundo e têm muito a contribuir em seu benefício. O Evangelho é um bem, não apenas para quem crê, mas também para toda a comunidade humana.
A doutrina social da Igreja, elaborada ao longo de séculos e apresentada modernamente em várias encíclicas e outros documentos do magistério eclesial, expõe de maneira sistemática o pensamento social cristão e católico sobre temas como a dignidade humana, as relações sociais e políticas, a economia, a justiça social, a paz no mundo e, mais recentemente, sobre as questões ambientais. Nada disso é indiferente ao Evangelho.
Francisco recorda, com renovado frescor, que a atenção especial aos pobres, doentes e desvalidos deriva diretamente da fé em Cristo. Portanto, essa preocupação também é parte integrante da evangelização e precisa ser traduzida, não apenas em atitudes assistenciais, mas também na ação em favor da justiça e do respeito pela dignidade de todos no convívio social.
Porém, o Papa recorda que o Evangelho não é ideologia, mas força transformadora da vida. Não se faz a evangelização por decretos, nem por decisão em assembleias, mas pela ação de pessoas felizes por terem encontrado a grande luz de suas vidas no Evangelho de Cristo e na fé em Deus. Já havia dito Bento XVI: “a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração”. O Evangelho enche de alegria o coração daqueles que o acolhem; e eles o transmitem, não como um dever pesado, mas como alguém muito feliz por ter coisas boas a comunicar.