Ano da vida Consagrada
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
O Ano da Vida Consagrada (AVC) nos propõe a profundar a reflexão sobre o tema A vida consagrada hoje, sublinhando três palavras (ou conceitos) chaves da mesma: Evangelho, Profecia e Esperança. Cada uma delas chega aos ouvidos e soa ao coração de todo consagrado ou consagrada com uma carga histórica e um significado inexauríveis. Vale a pena deter-se um momento para ouvir, num silêncio reverente, solene e respeitoso, o que nos podem dizer diante dos desafios da sociedade contemporânea.
O Evangelho
Palavra de origem grega euaggélion, que significa literalmente “boa nova”. Expressão utilizada pelos autores neotestamentários para resumir o anúncio do Reino de Deus por parte de Jesus, o Galileu. A tônica de boa nova (ou boa notícia) pode ser contrastatada com a mensagem severa do precursor João Batista, profeta igualmente severo que vivia na solidão como “a voz que clama no deserto”. De fato, enquanto este último preconiza um juízo iminente como “um machado colocado na raiz da árvore”, o profeta de Nazaré, ao contrário, além de percorrer os povoados, aldeias e campos, caminhando inclusive entre publicanos, pecadores e marginalizados, acentua o amor, a misericórdia, a compaixão e o banquete do Reino.
Ambos se enquadram no contexto da longa expectativa judaica quando à vinda do Messias. Ambos iniciam com o ritual do batismo nas águas do rio Jordão e ambos profetizam a necessidade da conversão, pois “o Reino de Deus está próximo”. João, entretanto, aparece como uma figura séria e sisuda, ascética, na linha de alguns profetas do Antigo Testamento que pregam o julgamento do “Dia do Senhor”, ao passo que Jesus enfatiza a beleza do encontro ou reencontro com Deus, que Ele chama de Abba (=Papai), o qual jamais fecha a porta quando alguém bate, jamais volta as costas quando alguém busca sua face. “Jamais se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir perdão”, diz o Papa Francisco.
É nas parábolas do Reino, porém, que transparece o sentido mais profundo da Boa Nova. São histórias exemplares e pontuais, em geral curtas, revestidas de palavras ao mesmo tempo simples e profundas, iluminados pela alegria de quem descobre um tesouro. Não qualquer tesouro, que possa ser equiparado a outros, e sim a pérola mais precisosa que alguém seja capaz de imaginar. Tanto que, por esse tesouro, a pessoa se dispõe a abandonar tudo, mudar radicalmente a vida, seguir os passos do Mestre e jogar-se inteiro e confiante nas mãos do Pai. Ou seja, além de “nova” no sentido de inédita, surpreendente e imprevisível, a notícia é “boa”, inigualável, vem embalada na bondade infinita do Pai, o que traz serenidade e paz profundas.
A noção de “boa notícia” entra também em contraste com o ensinamento dos saduceus, dos escribas e dos fariseus. Estes, de fato, haviam transformado a antiga aliança em uma “má notícia”, que penalizada de forma particular os pobres, os doentes e os pecadores – três termos não raro sinônimos nos relatos evangélicos. Tendo deixado “a lei e os profetas” fossilizar-se, as autoridades judaicas excluiam da religião e da sociedade os que viviam à margem de seus rígidos preceitos, verdadeiros fardos “que eles mesmos não levantavam sequer com um dedo”, acusa o profeta de Nazaré. Diferentemente deles, atestam os evangelistas, “Jesus falava como quem possui autoridade”. De onde lhe vinha semelhante autoridade? Até mesmo uma leitura superficial dos quatro Evangelhos demonstra que o “ebreu marginal” (J.P.Meier) sabia estabelecer uma ponte ou uma escada entre o coração misericordioso do Pai, por um lado, e a alma aflita e sedenta do povo, por outro.
Mas onde brilha com mais força a concepção de “boa nova” do Reino é, sem dúvida, na parábola do Filho Pródigo (ou do Pai Misericordioso). O confronto aqui contrapõe o filho mais velho, rigoroso observante da lei e obediente até a subserviência, e o filho mais novo, que havia esbanjado sua parte da herança numa vida desregrada e mundana. A acolhida e a grandiosa festa que o Pai concede a este último, quando do seu regresso a casa, ultrapassa todas as medidas e todos os critérios da razão humana. Não exitem preconceitos, discriminação ou limites para entrar na Casa do Pai. O banquete e a alegria se justificam e se tornam ainda mais eloquentes porque “esse teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e voltou a se encontrar”.
No seguimento de Jesus, e levando em consideração o Ano da Vida Consagrada, cabem algumas perguntas dirigidas a todas as pessoas consagradas: até que ponto, nos dias de hoje, eles e elas constituem (ou não) motivo de alegria, de festa, de “boa notícia” para os pobres e excluídos, os mais pequenos e abandonados? Sua vida, palavras e obras constituem um testemunho que convida ao encontro ou reencontro com o Deus de Jesus Cristo? Em que medida as estruturas atuais dos institutos consagrados permitem (ou não) de vivenciar com alegria e profundidade a pobreza, a obediência e a castidade? Os três votos ou exigências evangélicas são tidos apenas (e tristemente) como um “não” de renúncia ou, de forma predominante, como um “sim” de quem descobriu o verdadeiro tesouro, o significado mais profundo e real da existência? No interior das comunidades religiosas consagradas – hoje, aqui e agora – respira-se um oxigênio puro e libertador ou, inversamente, prevalecem olhares oblíquos, palavras feito facas afiadas e silêncios envenenados? Por trás dessas questões – e de tantas outras – não se escondem os motivos da tão alardeada crise da Vida Religiosa Consagrada (VRC)?
A Profecia
Ainda que veloz e superficial, uma retrospectiva sobre os escritos veterotestamentários, com destaque para os textos do movimento profético, põe em revelo três dimensões da profecia no Antigo Testamento: um “lembra-te”, uma denúncia e um anúncio. O “lembra-te” reporta-nos à experiência fundante do Povo de Israel, de maneira particular aos livros do Êxodo e do Deuteronômio. Tendo presente na memória o fato de ter sido escravo na terra do Egito, sob as garras da tirania de Faraó, e tendo sido resgatado por Deus e por Ele conduzido à Terra Prometida, esse mesmo povo não pode submeter à escravidão nem os seus próprios irmãos hebreus, nem o estrangeiro que vive ao seu lado (Dt 5, 15; 15,15; 24,18).
Os profetas, mais que revolucionários inovadores, buscam legitimar sua mensagem na herança dessa experiência que deu origem a Israel como povo da aliança. O chamado “credo histórico” em suas várias versões (por exemplo, Ex 3,7-10; Dt 26,5-10) constitui uma base sólida para resgatar, ao mesmo tempo, os princípios da aliança e da promessa de Deus a seu povo, reproduzindo-os diante dos novos desafios no contexto da monarquia e do exílio. No movimento profético e pela boca de seus mensageiros, fala o mesmo Deus que viu a miséria dos escravos no Egito, ouviu seu clamor, conheceu seu sofrimento e desceu para libertá-lo. Os verbos ver, ouvir, conhecer e descer – ilustrativos de uma espiritualidade que experimentou um Deus atento, sensível e solidário à situação dos pobres e excluídos – coloca-se agora decisivamente em defesa “do órfão, da viúva e do estrangeiro”.
Dessa solicitude experimentada na espiritualidade do processo de escravidão-êxodo-deserto, vem a denúncia como segunda dimensão da profecia. O profeta se faz duplamente portavoz: por uma parte, representa o clamor daquele que, devido à opressão, permanece reduzido ao silêncio. Silenciado e silencioso, apela ao enviado de Deus pedindo-lhe socorro e clemência. Por outra parte, o profeta representa também a presença e a palavra viva e vibrante do Deus invisível. Deus que, como em Amós e Miquéias, respectivamente, se compadece dos pobres que “são vendidos por um par de sandálias” ou “esfolados, descarnados e devorados como carne de panela”. Ainda de acordo com o Livro de Miquéias, os chefes de Jacó e os governantes da casa de Israel “esqueceram o direito e a justiça” (capítulo 3). O profeta trânsita entre o cenário onde o povo sofre, geme e grita e o coração de um Deus que olha com predileção os oprimidos de todas as tiranias e todos os tiranos. O Deus da aliança e da promesa é igualmente o Deus que clama por justiça e paz!
A partir do “lembra-te” e da denúncia, a profecia desdobra-se naturalmente em uma terceira dimensão, a do anúncio. Como vmos no “credo histórico”, além de ver, ouvir e conhecer a situação do povo, Deus desce para libertá-lo e conduzi-lo à Terra Prometida. Todo anúncio profético tem como fonte originária essa experiência libertadora, por um lado, e a aliança/promessa, por outro. A caminhada do Povo de Israel através dos caminhos do êxodo, do deserto e do exílio significa um processo que vai da escravidão à liberdade. Processo que deverá adquirir sua plenitude no mistério da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, quando o Verbo de Deus se faz carne e arma sua tenda entre nós, desce definitivamente ao encontro de cada ser humano e de toda a humanidade. Do ponto de vista teológico, verifica-se então a passagem da morte para a vida, das trevas para a luz. Os profetas preanunciam a plena realiação da aliança e da promessa, seja na “Nova Jerusalém” (Is 65,17ss) ou na “Jerusalém Celeste”, onde “não mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap 21,1-8).
Também neste caso cabem algumas interrogações relativas à VRC. Em que medida a noção do “lembra-te” nos reporta hoje não somente à experiência fundante do Povo de Israel e à prática de Jesus, mas também à inspiração do fundador ou fundadora? Esse “lembra-te” segue nos questionando e interpelando diante dos desafios do mundo de hoje, tanto em termos pessoais quanto comunitários e institucionais? Até que ponto o conforto e o comodismo da sociedade contemporânea atenua e neutraliza a veemência da profecia diante das injustiças e desequilíbrios socioeconômicos? Ou tendemos a “naturalizar” o abismo entre pobres e ricos, vendo-o como “natural”? No que diz respeito ao anúncio, quantas vezes nossas palavras e discursos proféticos perdem qualquer força se e quando comparados ao comportamento diário!
“Tra ir dire e il fare c’è in mezzo il mare” (entre o dizer e o fazer, no meio existe o mar), diz um provérbio italiano. Vale perguntar se não será essa distância entre a pregação e o testemunho um dos principais fatores de crise! E com maior razão da falta vocações e de entusiasmo juvenil! Sabemos que na fonte a água é mais cristalina. Talvez o maior desafio da VRC hoje seja o de resgatar a intuição do fundador ou fundadora, no seguimento de Jesus Cristo, buscando aí o oxigênio primaveril que pode fazer de nossa vida uma “boa nova” para os pobres. A comunidade religosa, bem como o tetemunho concreto de cada consagrado, se levados a sério e vivenciados em profundidade, pode sím transformar-se em sangue novo num organismo socioeconômico e político-cultural que caminha a passos largos para o ocaso.
A Eperança
Na socieade contemporânea – moderna, tardomoderna ou pósmoderna – a esperança sofreu um reducionismo de proporções espantosas. Ao invés de ter os olhos fixos no horizonte de um plano articulado e de longa visão, limita-se a responder às expectativas imediatas e imediatamente à mão. Em lugar de uma utopia que questiona, interpela e conduz a uma ação sociaopastoral transformadora, impõe-se a busca febril e frenética de buscar respostas aos problemas imediatos. A projetação do futuro cedeu o lugar ao desejo imperioso e ilimitado do presente. Paradoxalmente, uma sede de novidades sem precedetes, se possível a cada hora ou a cada dia, nos mantém prisioneiros do aqui e agora. Ao invés de empreender todos os esforços para voar, tornamo-nos pássaros passivos e domesticados de uma gaiola confortável e bem nutrida. Águias com medo de aventurar-se em voos mais altos e ousados, ou “pescadores de homens” que têm coragem de “avançar para águas mais profundas” (Lc 5,4).
A expectativa de novidades diárias, pelo seu brilho e excesso, banalizou a própria esperança. O conceito de esperar reduziu-se a aguardar o próximo ônibus, táxi, trem ou avião; a próxima moda de roupa, de calçado ou de penteado; o próximo modelo de celular, de relógio ou de televisor; o último lançamento de notebook, a marca da onda ou o carro do ano, os equipamentos mais sofisticados de conforto e segurança… e assim por diante. A esperança tornou-se pequena, demasiadamente pequena, adaptando-se aos contornos do mercado de consumo. Tão estreita a ponto de ver-se guiada, em últma instância, pela propaganda, a publicidade, o marketing. Perdeu pés e asas, perdeu a faculdade de sonhar! Também a liberdade, em lugar de um projeto sério e responsável para o futuro, reduziu-se à “livre escolha” entre a multidão de objetos à mão. Uma espera materializada e coisificada que fecha o horizonte da verdadeira esperança.
Tornamo-nos como crianças contaminadas desde o berço pelo vírus da chamada pósmodernidade. No Natal, elas aguardam ansiosamente o presente do Papai Noel, sem dar-se conta que o Menino que acaba de nascer na manjedoura, embora meio escanteado e evergonhado nas lojas do shopping center, também é portador de um presente. Enquanto o fascínio do velhinho de barbas e cabelos brancos faz perder a cabeça por algo perecível e descartável, como o são todos os objetos, a estrela sobre presépio indica algo insuperavelmente mais grandioso, cheio de brilho e eterno. Contentamo-nos com uma satisfação que nos mantém entretidos por alguns dias (ou horas), deixando de lado a “boa nova” que é a razão mesma da existência, o sentido da vida em plenitude.
O empenho pela construção de uma nova sociedade – ideal e esperança de décadas passadas – converteu-se na absoluta necessidade de acompanhar a vertiginosa rapidez com que novos produtos entram no palco sob a mira dos microfones, holofontes e câmeras, batem insistentemente à porta, ou melhor, são oferecidos na tela da TV e na “telinha” do celular. A noção de esperar tornou-se praticamente sinônimo de comprar, o que aprisiona a esperança nos limites ou possibilidades do bolso, do salário ou do cartão de crédito. Por outro lado, na medida em que os produtos encontram-se expostos na vitrine, profusamente iluminados e atraentes, a esperança converte-se em desilusão para quem não dispõe dos recursos necessários. São tantos e tão variados os apelos que colocam a esperança ao alcance da mão que o fato de não poder adquiri-los, aos poucos, mata a própria esperança. Ou então, no fim da linha, engendra a rebeldia, o roubo e a violência.
A tal ponto reduziu-se a concepção cotidiana da espera que, na correria e na agitação do dia-a-dia, perdeu-se o sentido de “esperar contra toda esperança” (Rm 4,18). A ânsia do curto prazo, da realização pronta e instantânea dos instintos e desejos – até mesmo ou especialmente os mais supérfluos – atropela a busca lenta e paciente do longo prazo. Não há tempo a perder. Os imperativos do presente não deixam espaço para arquitectar um projeto que pode e deve ser construído sódida e solidariamente, passo a passo, tijolo a tijolo, mão a mão. O império da aquisição imediata do prazer pelo prazer (hedonismo) traz embutido o império do efêmero e, em grau ainda mais preocupante, o império do descartável. Com isso, em lugar de relações humanas firmes e duradouras, tendem a prevalecer os laços e vínculos provisórios, momentâneos, “líquidos” – e igualmente efêmeros e descartáveis.
Evidente que as pessoas e comunidades da VRC não estão imunes a essa quadro tentador de uma espera que tende a diminuir o horizonte da esperança evangélica. A utopia como que se transfigura em melhorar o próprio bem-estar, o conforto pessoal e comunitário, quando não no mero acúmulo de bens materiais e patrimoniais para o Instituto. Neste caso, todas as justificativas são válidas! Entra em cena o individualismo, o egoísmo e o egocentrismo (e quantos outros “ismos”) exacerbados da sociedade contemporânea, os quais, da mesma forma que atravessam e impregnam os relacionamentos ad extra, configuram também as relações interpessoaos e comunitárias ad intra. A profissão dos votos, por mais preparada, sincera e refletida, não isenta os consagrados dos apelos e tentações que os cercam. Pelo contrário, a proibição tácida ou explícita pode torná-los ainda mais cobiçados.
Aqui, como nos itens anteriores, cabem algumas perguntas: num mundo voltado para a busca do prazer imediata, como resgatar o sentido dos votos perpétuos? No cenário de laços transitórios, virtuais e descartáveis, qual o sentido de uma dedicação envolvendo a existência humana como um todo? Diante da vitrine iluminada e atraente do “aqui e agora”, como projetar a esperança no futuro através da missão entre os pobres e do envolvimento destes como protagonistas da própria libertação? Como acreditar que o Reino tem suas raízes nos porões e periferias das metrópole buliçosas e cheias de ruídos ou nos longínquos grotões? É possível superar o imperativo da satisfação presente, em vista de um amanhã a ser recriado, vale dizer, em vista da utopia cristã escatológica? Contra a espera do imediatismo, podemos ainda conferir novo significado à noção de “esperar contra toda esperança”?
Roma, 28 de novembro de 2014