Benditas mulheres! Benditas mães de maio!
Rose Nogueira
Faz cinco anos e tudo ainda é inacreditável. Em uma semana que começou com o Dia das Mães, 493 pessoas, comprovadamente, foram assassinadas por arma de fogo em São Paulo – uma grande parte delas com os sinais clássicos de execução. Tiros de cima para baixo, nas costas, na nuca, na testa, no peito. Atiraram para matar.
Diante desse número escabroso, só aquelas pessoas muito especiais teriam a força de transformar sua dor em coragem santa: as mães que perderam seus filhos. Elas relatam seu sofrimento no livro Do Luto à Luta – Mães de Maio, lançado no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Do total de mortos, 352 eram jovens, de 11 a 29 anos, homens na quase totalidade. Mulheres foram 18, uma delas grávida de nove meses, prestes a dar à luz. A menina, ainda na barriga da mãe, também foi baleada. Um tiro pegou no seu joelhinho. E ela, mesmo dentro do aconchego do ventre da mãe, levou a mãozinha ao joelho, como se sentisse a dor no local. No laudo oficial, a menina morreu por “insuficiência materna”, e não pelos tiros. A mãe não pode lhe garantir a vida porque morreu na hora, baleada também na cabeça. A menina já tinha nome. Seria Bianca, filha de Ana Paula, que era filha de Vera. E seu pai, que seguia pela calçada ao lado da mãe, também recebeu a carga de balas do mesmo assassino – ou assassinos.
Esse é um dos quase 500 casos daquela semana de cinco anos atrás, e sozinho já seria um escândalo por ultrapassar a barreira do desumano. Aconteceu em São Vicente, na Baixada Santista, onde também morreu Edson Rogério, filho de Débora, que teve o contra-cheque do salário que carregava no bolso manchado de sangue do tiro no peito. Ele abastecia sua moto num posto de gasolina quando os homens vestidos de preto, com máscaras ninja, chegaram e deram cabo de toda vida que houvesse por perto.
A morte por bala de calibre grosso em maio de 2006 encobriu a vida nas periferias e nos bairros mais pobres da capital, mas também de algumas cidades médias e grandes de São Paulo. Citamos dois casos horríveis da Baixada Santista porque lá fatos parecidos voltaram a acontecer no ano passado e agora nos últimos dias.
De comum, e chamou atenção, todos os lugares em que ocorreram os crimes eram pobres e todas as pessoas que morreram eram pobres, a maioria lutando pela sobrevivência. Os agentes do Estado assassinados eram soldados, investigadores de delegacias de bairro, guardas municipais, carcereiros e um bombeiro, servidores que também lutavam para viver. Segundo a polícia, foram 41. Os “outros”, os simples cidadãos que foram mortos apenas pelo fato de cruzarem com assassinos, são mais de 450. Impossível não lembrar que todos, os quase 500, um dia pesaram três quilos, foram abraçados ao nascer e mamaram numa mulher. Todos tinham os direitos garantidos, simplesmente porque um dia foram crianças que fizeram graça, meninos que foram à escola, adolescentes que se apaixonaram, homens e mulheres que talvez sonhassem – e tinham o direito de continuar vivos. Eram seres humanos.
Matou-se em São Paulo naquela semana de 2006 mais do que se mata nas guerras. Na noite de 15 de maio o toque de recolher foi uma realidade. Nunca uma notícia se espalhou tão depressa: “quem estiver na rua à noite corre perigo de vida”, informava o boca-a-boca. Escolas suspenderam as aulas, lojas, oficinas e fábricas dispensaram seus funcionários e São Paulo teve o maior congestionamento do ano às quatro da tarde, um dos poucos horários calmos no trânsito caótico da cidade. No dia seguinte a conta foi alta: a madrugada teve 117 mortos. Quem era o mocinho, quem era o bandido? Que guerra foi essa onde o que restava de humanidade se perdia no medo? A cada dia, as manchetes dos jornais informavam com a naturalidade de quem já se acostumava à barbárie: “Polícia mata mais 90 suspeitos”… como se matar suspeitos fosse normal e permitido.
A perplexidade ainda permanece. A única palavra possível para tal perda de controle do Estado é justiça. Que seja federal, porque não podemos acreditar como de bom senso o “arquive-se”, que tem se repetido. O caminho racional é a federalização dos crimes de tortura, execução sumária e desaparecimento forçado, que continuam a acontecer em grandes proporções. É o caso da Baixada Santista.
No ano passado, em apenas alguns dias do mês de abril, quando também houve o “toque de recolher”, 26 pessoas foram executadas em Santos, Guarujá, São Vicente, Cubatão e Praia Grande. A matança só parou quando uma autoridade diplomática dos Estados Unidos aconselhou aos cidadãos de seu país que não fizessem turismo por lá, pois nada poderia garantir suas vidas. Quase vinte policiais militares foram presos, suspeitos de participação em grupos de execução, mas foram soltos em seguida. Não sabemos como andam os inquéritos.
Neste ano, novamente em abril, motos com homens vestidos de preto e máscara ninja passam atirando, ferindo e matando. Em Santos, na semana passada, a câmera de segurança de um prédio flagrou uma execução, com o motorista de um carro chamando dois homens de meia-idade, como se pedisse uma informação. Ao se dirigir ao motorista os dois foram baleados no meio da rua. Um morreu na hora, o outro ficou gravemente ferido. As imagens foram parar no noticiário das TVs pela manhã.
O que isso representa, além da perversidade? Continuamos indignados. É que somos da espécie humana e diante da impunidade que gera impunidade só podemos ter uma certeza: ficamos muito menores diante de cada tragédia dessas. Quem nos dá um pouco de grandeza ainda são as Mães de Maio. Benditas mulheres! Benditas mães!