Bento XVI: “que a religião não sirva à violência”
Do penhasco do monte Nebo, Bento XVI voltou o olhar para o Jordão, para Jericó, para Belém. “Deixem-me olhar”, murmurou aos fotógrafos que o bombardeiam com flashes. Depois, encerrou-se por um momento em meditação. Porque essa viagem tão político-religiosa também é uma peregrinação interior. Desde quando terminou seu primeiro livro sobre Jesus, explodiu em Ratzinger a vontade de voltar às terras onde Cristo pregou. Ele mesmo confessou o desejo de “ver, tocar, saborear” os lugares da presença física do Salvador, de Nossa Senhora, dos apóstolos e dos “primeiros discípulos que o viram ressuscitado dos mortos”.
Aqui no Nebo, Moisés concluiu a sua viagem, e aqui Bento XVI evoca – e as suas palavras chegam em um segundo em Jerusalém – “o inseparável vínculo que une a Igreja ao povo judeu”. Deve ser superado, acrescenta, todo obstáculo que se interpõe à reconciliação entre cristãos e judeus.
Duas horas depois, entrando na mesquita Al-Hussein, o pontífice exorta à cooperação entre cristãos e muçulmanos. Justamente por causa de uma “história tão frequentemente marcada por incompreensão”, explica, os seguidores das duas religiões devem se apresentar juntos ao mundo, como adoradores do único Deus: misericordiosos e compassivos, testemunhas coerentes do que é justo e bom, sempre lembrando-se da dignidade da pessoa humana. Cristãos e muçulmanos, declara, podem se conhecer e se respeitar mais para construir juntos uma sociedade em harmonia com a ordem divina.
Mas também é a ocasião para condenar, diante de uma platéia de muftis e ímãs muçulmanos e muitos representantes diplomáticos, a “manipulação ideológica” da religião, que produz divisões, tensões e violência. Pouco antes, abençoando a pedra fundamental da universidade católica em Madaba (aberta a muçulmanos e judeus), Bento XVI pronunciou com firmeza: “A religião é desfigurada quando é obrigada a servir à ignorância e ao preconceito, ao desprezo, à violência e ao abuso”. E continuou: “Aí, não vemos apenas a perversão da religião, mas também a corrupção da liberdade humana, o obscurecimento da mente”.
Em Aman pela segunda vez Ratzinger entrou em uma mesquita. E a percorreu com todos os sapatos. Pe. Georg, seu secretário, já tinha prontas em um saquinho duas pantufas especiais, mas os anfitriões jordanianos inventaram um percurso de tradicionais tapetes brancos que preservam a santidade da sala de oração. O L’Osservatore Romano publicou, em primeira página, a foto do papa com os mocassins vermelhos e o príncipe Ghazi bin Talal com as sandálias, atravessando juntos a mesquita. Foram os jordanianos, indica o órgão do Vaticano, que não pediram a Bento XVI que retirasse os sapatos. Que ninguém diga que o pontífice não respeitou o templo.
Internacionalmente, Ghazi bin Talal é um dos defensores mais comprometidos com o diálogo entre cristianismo e islã. Fala um inglês fluente e saudou o pontífice em latim: “Pax vobiscum”. O príncipe deu as boas-vindas a Ratzinger como um grande líder espiritual, líder global, autor de “muitos gestos amigáveis e gentis” para com os muçulmanos, comprometido com o diálogo inter-religioso e homem capaz de ir contra a corrente, também reintroduzindo a missa em latim.
Mas mandou uma mensagem precisa: não é bom ofender o nome do profeta Maomé. “Agradeço Vossa Santidade – diz com elegância oriental – por ter expressado arrependimento pela ofensa causada aos muçulmanos pelo discurso de Regensburg. Os muçulmanos apreciaram os esclarecimentos do Vaticano de que o que foi dito não reflete a vossa opinião, mas era apenas uma citação em uma aula acadêmica”.
Porque o profeta Maomé – reforça o príncipe, vestido em sua túnica branca e o manto bege ornado de ouro, a barba cuidada e o olhar penetrante – é completamente diferente das imagens distorcidas que circulam no Ocidente entre quem não conhece o árabe e o Corão. E então caberá aos muçulmanos explicar os exemplos de virtude, caridade, piedade e benevolência do Profeta.
Há habilidade política na intervenção de Talal, já que, em Aman, ao longo do dia explodiram novamente as polêmicas entre os falcões integralistas islâmicos que denunciam as “desculpas que faltaram do Papa”, e os pacifistas, satisfeitos com o arquivamento do “equívoco de Regensburg”. O príncipe aponta para o diálogo: “Podemos e devemos ser adoradores do único Deus que nos criou e cuida de todas as pessoas em todos os cantos do mundo”.
Já é noite quando Bento XVI se diz cansado, mas de ótimo humor, na catedral greco-melquita, onde ondas de aplauso o acolhem. O patriarca Laham evoca o direito dos palestinos a uma pátria. Atravessando o Jordão, Bento XVI é chamado a falar.