Brasileirinhos
Maria Clara Bingemer
Infelizmente não se trata do belo chorinho de Waldir Azevedo. Nem de nada que a isso se assemelhe. A não ser o vocábulo “choro”, que na obra de Waldir significa graça, molejo e dança ritmada . Mas no triste assunto que aqui nos ocupa “choro” quer dizer pranto desesperado, dor inconsolável de famílias inteiras e legiões de amigos. Na verdade, de toda uma cidade, um país. “Choro” era o que embargava a voz da presidente Dilma Roussef ao se referir às jovens vítimas do ataque de Realengo: brasileirinhos. Pequenos, jovens, indefesos cidadãos retirados da vida tão cedo.
A morte dos doze adolescentes – crianças ensaiando o rito de passagem para a idade adulta – feridos de morte pela fúria desenfreada de um psicopata na escola Tasso da Silveira em Realengo, Rio de Janeiro, passará à história como um dos episódios mais dilacerantes que o Rio já viveu.
Começou cedo naquela manhã. Ouvia-se falar de Realengo, ligava-se a televisão e lá estava. O espetáculo era desolador e macabro. Policiais tentando conter pais, parentes e amigos dos alunos da escola com um inútil cordão de isolamento. E a tragédia acontecida minutos, horas antes ainda sem explicação nem esclarecimento. E as mães, com olhar esgazeado, queriam informação sobre onde estavam seus filhos. De suas gargantas saía aquela voz deformada pela dor que quer saber e ao mesmo tempo não quer.
Dos doze mortos, dez eram meninas. Bonitas, cabelos longos, graciosas e charmosas. Estreando a feminilidade, vivendo os primeiros amores. O assassino mirou em sua face, em seu pescoço, no centro de sua beleza. Queria desfigurá-las, destruí-las. O reconhecimento dos corpos pelos pais era difícil. Dor sobre dor aconteceu no IML. A carta deixada pelo assassino permite entrever traumas profundíssimos, um psiquismo absolutamente tenebroso onde o único lampejo de afeto se dirige à mãe adotiva junto à qual pede para ser enterrado.
Estaria na morte da mãe a raiz do seu aparente ódio pelo outro sexo? Ou nos retorcidos e obscuros elementos religiosos relativos a purezas e toques deixados no seu testamento? Não importa agora. Ao menos não importa tanto quanto o fato de que um desequilibrado neste nível conseguiu levar armas e munição abundante para perpetrar seu bárbaro crime. Mais: aparelhos sofisticados para acelerar a recarga das armas que pretendia descarregar integralmente sobre suas vítimas.
No passado recente de Wellington Menezes, uma solidão sempre mais profunda, um isolamento em uma casa distante do bairro onde cresceu e da escola onde estudou. Barba longa cortada poucos dias antes do crime. Horas e horas na internet e na TV. Horas e horas onde sua doença ia crescendo, tornando-se mais e mais grave, até explodir na matança caótica do último dia 7 de abril.
A tentativa de rastrear o porte de armas com as quais matou as doze crianças e feriu outras tantas identificou uma pessoa de quem a arma fora roubada. Como Wellington a terá obtido? E a farta munição que carregava em sua mochila e que usou para atirar a torto e a direito, matando e ferindo? Isso é o que importa saber. Não tanto para expô-lo mais e mais à execração pública. Não tanto para morbidamente fazer as famílias já tão golpeadas viver e reviver uma e outra vez a tragédia que para sempre marcará suas vidas. Mas sim para retomar uma discussão que o Brasil espera e necessita e que foi interrompida em 2005.
O plebiscito do desarmamento, acontecido há seis anos, levava consigo uma consistente esperança de que o porte de armas livre fosse abolido no país. Muitas pessoas, grupos e instituições que lutam pela paz fizeram campanha, se empenharam e lutaram. Mas o resultado foi uma derrota fragorosa nas urnas. Ganhou o lobby da indústria armamentista, o medo de pessoas que ainda crêem que estão mais seguras contra a violência possuindo as armas que multiplicam e perpetram a mesma violência que temem, apesar de todas as explicações e provas em contrário.
No entanto, a tragédia de Realengo tem que trazer de volta a discussão e gerar um novo referendo. Não é possível que armas trafeguem livremente pelas mãos de assassinos, doentes, perversos, ceifando vidas e destruindo o futuro da cidade e da nação. Retomar a luta pelo desarmamento é, a partir da última quinta-feira, obrigação de todo brasileiro. A memória dos doze brasileirinhos vitimados em Realengo é um instigante convite a fazer isso rápida e decididamente.