Cadáveres insepultos
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Prossegue inexorável o desfile de estatísticas, imagens, notícias, comentários, observações, entrevistas e análises sobre a tragédia recente dos refugiados no Mediterrâneo. De acordo com o Corriere della sera, (04/outubro/2013), um dos principais jornais italianos, por exemplo, o número dos imigrantes mortos nas águas do mar, ao sul da Itália, nos últimos anos já alcança a espantosa cifra de 19.142. Mas a tragédia de 3 de outubro/2013, por suas proporções inusitadas, parece ter sacudido a Europa e o mundo para o drama dos migrantes e refugiados: um barco com cerca de 500 africanos em fuga, entre eles muitas mulheres e crianças, sofreu um incêndio e naufragou ao tentar aportar nas costas do sul da Itália, perto da ilha de Lampedusa. Sobreviveram ao naufrágio apenas cerca de 150 pessoas. Os demais foram engolidos pelas ondas, às vistas dos habitantes, na maioria pescadores, impotentes e desesperados. Ao final, os corpos inermes e sem vida formavam uma grande macha na superfície azul do mar. Restou a imagem macabra, pungente e dramática dos negros sacos de plásticos estendidos ao longo da praia, imagem que desfilou tragicamente pela mídia escrita e televisiva. Sem falar do sensacionalismo de alguns meios de comunicação que aproveitam de tais números e imagens para considerações que beiram o preconceito e a discriminação, o racismo e a xenofobia.
Numa visão nua e crua dos fatos, as rotas dos deslocamentos humanos de massa, por toda parte, encontram-se quase sempre pontilhadas de cruzes, tristes e solitários sinais de morte, apesar de unidos por um trágico destino. As multidões que perdem a vida tentando atravessar as águas do Mediterrâneo e do Mar do Caribe ou as areais do deserto entre México e Estados Unidos e no norte da África, bem como de outras fronteiras particularmente ao sul e ao leste do planeta, vêem crescendo de forma assustadora. Sobem progressivamente às dezenas, às centenas e aos milhares… Ao mesmo tempo, assiste-se à “globalização da indiferença”, como afirma o Papa Francisco diante de tais fatos com suas imagens traumáticas. “Uma vergonha” – disse o Pontífice a respeito dos últimos mortos de Lampedusa, o qual, quando de sua visita à mesma ilha, já havia declarado que “os migrantes e refugiados não são peões na tabuleiro de xadrez da humanidade”. Sonhos de liberdade e de vida melhor que se convertem em pesadelos!
As autoridades italianas, por sua vez, fazem seguidos apelos à Comunidade Europeia, no sentido de buscar uma solução unificada, uma Lei de Imigração para todos os países do continente. A costa meridional do Metiterrâneo – dizem – não é somente a fronteira da Itália com os países da África (Eritreia, Etiópia, Tunísia, Egito…) e do Oriente Médio (Síria, Libano…), mas a fronteira com a Europa no seu conjunto. Daí a necessidade do envolvimento de todos. Mas a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Espanha e demais países fazem “ouvidos moucos” aos apenos da península italiana. Ao lado de vãs e vagas promessas ou de oportunísticas palavras de solidariedade, prevalece o silêncio e a indiferença geral, como se a gravidade do “problema” se limita-se ao sul do velho continente. Enquanto isso, os fatos trágicos vão se acumulando, sem qualquer previsão de um fim a curto ou médio prazo.
Não seria exagero falar de “cadáveres insepultos”, uma vez que, na quase totalidade dos casos, sequer lhes são concedidos os costumes fúnebres dos parentes e de sua cultura original. Privados em vida de terra e trabalho, teto e pão, condições mínimas de sobrevivência; privados, mesmo depois da morte, de um velório, uma flor, a luz de uma vela ou uma prece que os assista e conforte os familiares; privados, do berço ao túmulo, do respeito mínimo à dignidade humana. Verdadeiros mártires anônimos do mundo contemporânea, ceifados na flor da idade e das energias na luta por uma vida digna. Por “mares nunca dantes navegados”, como diria o poeta português Camões, a esperança, tragado pelas águas, se desfaz nos ventos da adversidade. Pior ainda quando nos damos conta que por trás de cada um desses números encontra-se não somente o rosto de uma pessoa humana, mas quase sempre de toda uma família, órfã e perdida, como fruto de uma “viagem” pressionada pela situação de completo abandono.
Para estes refugiados, a via da migração tem mão única. Não há qualquer possibilidade de retorno. Para trás, em muitos casos, ficaram as imagens sangrentas da guerra civil, as ruínas da própria casa, os escombros da cidade em chamas, as marcas dos disparos espalhadas pelas paredes, os brutais assassinatos ou estupros de pais, mães, irmãos, irmãs, filhos, filhas, familiares em geral… Para trás, em outros casos, ficaram a pobreza e a miséria, a fome cruelmente estampada nos olhos, no rosto desfigurado e no corpo esquelético de filhos órfãos de pais vivos, os quais, embora jovens e fortes, se vêem impossibilitados de encontrar o alimento diário para a família… Para trás ficaram as cinzas de uma cidadania abortada, negada, onde a exploração e a violência gera, ao mesmo tempo, concentração de riqueza e exclusão social… Para trás ficaram as marcas da morte precoce, disseminados pelas regiões e países pobres, periféricos, subdesenvolvidos que, depois de colonizados e saqueados, foram abandonados à próprio sorte.
Diante da impossibilidade de retorno, resta como única tentativa de sobrevivência caminhar sempre para frente. Não importa se o horizonte se apresenta incerto, nebuloso e sombrio, é preciso enfrentar os perigos do incógnito, do desconhecido. Resta, em outras palavras, o risco de migrar a qualquer preço, de correr em busca em busca de trabalho e liberdade, seguindo as pegadas do desenvolvimento e do capital. Nesse projeto de fuga, os desterrados investem todo o dinheiro que seja possível arrumar, vendendo os últimos pertences familiares. Cegos pelo desespero, atiram-se sobre aos atropelos sobre velhas barcaças ou vagões de trens enferrujados, na esperança de chegar ao outro lado do mar ou do deserto para recomeçar a vida… Por outro lado, acabam alimentando os atravessadores (gatos) e todo crime organizado, convertendo-se em uma espécie de moderno “mercado de carne humana”, como denunciava Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, Itália, referindo-se aos emigrados europeus no final do século XIX.
Como ponto final, levanta-se, ainda desta vez, uma tríplice interpelação: os cadáveres insepultos dos migrantes e refugiados, gritando por justiça e cidadania; a de Scalabrini, considerado “pai e apóstolo dos migrantes”, com a máxima de que “para os migrantes, a pátria é a terra que lhes dá o pão”; e a do Papa Francisco, chamando a atenção para a dignidade e a paz de toda a pessoa humana, como linha mestra da Doutrina Social da Igreja, independentemente de credo e religião, raça e cor da pele, língua, povo ou nação. Nada mais e nada menos do que os princípios básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Roma, Itália, 05 de outubro de 2013