Corrupção nossa de cada dia

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Num livro de ampla divulgação, que já se tornou um clássico latinoamericano – As veias abertas da América Latina – Eduardo Galeano enfatizava que os indígenas deste continente se parecem, muitas vezes, com “mendigos sentados sobre montanhas de ouro”. Tanto que, ao longo de sua história, onde a terra era mais rica, a população se tornou mais pobre. Os exploradores chegam de fora como aventureiros, extraem do solo e dos trabalhadores tudo o que lhes é possível, depois abandonam a natureza e o povo à própria sorte. Casos típicos são, por exemplo, o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Brasil, e a região das minas de prata, em Potosí, na Bolívia. Retratos desse abandono poderiam multiplicar-se igualmente na Guatemala, México, Chile, Praguai, e outros países.

A esse respeito, importa retomar a frase do Pe. Antonio Vieira, citada recentemente pelo vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres de Britto, no painel especial de lançamento Guia de Ética e Autoregulementação do Grupo RBS. Disse literalmente o ministro do STF: “se os senhores me permitem, no século XVII, o Padre Antônio Vieira, num trocadilho bem posto e também de enxuta contemporaneidade, disse o seguinte: ‘Os governadores chegam pobres às Índias ricas e retornam ricos das Índias pobres’”. Semelhantes abutres transportam consigo os tesouros nativos e deixam para trás o legado do abandono, da miséria e da fome.

As duas citações acima servem de chapéu introdutório ao tema antigo e sempre atual da corrupção no Brasil. Três motivações levam à retomada do assunto: a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Carlinhos Cachoeira, o julgamento do Mensalão pelo STF e a propaganda para as eleições municipais. São três janelas para observar, de forma retrospectiva e prospectiva, a prática política num país histórica e estruturalmente marcado pelos usos e abusos no exercício do poder. Janelas que, nesse exercício, descortinam não tanto um projeto de nação por parte dos representantes do povo, e sim um projeto de poder. Este representa a meta a ser alcançada. Depois, o posto a ser preservado a todo custo. O eleitorado torna-se refém dessa sofreguidão pelo poder junto com seus benesses e privilégios.

Algumas expressões cunhadas no decorrer dos séculos constituem verdadeiras chaves de leitura para esse estado de coisas. Convém sublinhar a “cultura da corrupção”, o conceito de “patrimonialismo” (Raymundo Faoro), o “balcão de negócios” das emendas parlamentares, a “promiscuidade entre os poderes executivo, legislativo e judiciário”… Sem esquecer o “tráfico de influência”, a “compra e venda de votos”, a prática do “caixa dois” e do “apadrinhamento”, o nepotismo e blindagem dos comparsas de partido, o “curral eleitoral” e o “poder das oligarquias”, entre tantas outras. A ética democrática dá lugar à máxima de que “os fins justificam os meios”.

Muda o cenário da Colônia, do Império ou da República. Mas não mudam essas formas de se apropriar da rex publica em benefício próprio ou familiar, em proveito do grupo ou da classe dominante. O binômio “Casa Grande & Senzala” (Gilberto Freire), mais vivo e vigoroso do que nunca, atravessa incólume os séculos e os modelos de governo. Evidentemente por trás da política escondem-se interesses econômicos. Também estes seguem fortes e fortalecidos, acomodando-se aos “donos do poder” de plantão, à assimetria entre o andar de baixo e o andar de cima da pirâmide social e às turbulências do mercado mundial.

Tanto a política quanto a economia brasileiras sobrevivem sem mudanças substanciais aos ciclos do pau-brasil e da cana-de-açucar, do ouro e do algodão, da borracha, do cacau e do café… Seguindo hoje com os “ciclos” da indústria e das tele-comunicações, da soja e da carne, do minério de ferro e do agronegócio. Política e economia vinculadas, desde os primórdios, aos interesses internacionais do modelo de produção capitalista: primeiro mercantil, depois industrial, e hoje financeiro. Desde o século XVI, o “planeta” Brasil entrou na órbita na economia mundial, como satélite periférico e fornecedor de matérias primas. Atualmente, embora com alguns ajustes de rota e um olhar mais atento para o mercado interno e as populações carentes, vale o mesmo para o contexto da economia globalizada.

É nessa trajetória de interesses persistentes e antagônicos que se entendem as práticas políticas nefastas que estão em averiguação (na CPI) ou no banco dos réus (no julgamento do Mensalão). Entende-se também a disputa acirrada e por vezes mutuamente agressiva dos cargos de vereador e prefeito nas eleições que se aproximam. A função pública, além de ser por si só um empreendimento rendoso, abre portas e janelas para novos empreendimentos privados. Fecha-se um círculo de aço, nocivo e vicioso: um bom investimento no pleito eleitoral pode resultar na conquista da cadeira; esta, por sua vez, proporciona um leque maior de oportunidades, cujo rendimento pode garantir o cargo vitalício.

Perpetuam-se, assim, não poucas dinastias familiares ou oligárquicas, tão conhecidas quanto notórias. Verdadeiros “donos do poder” nos estados ou municípios a eles subjugados. Não seria difícil elencar uma série de nomes e sobrenomes de tais dinastias. Mas o mesmo aplica-se a novas formas de “tomar e se manter no poder”, para usar a célebre expressão de Maquiavel.