D. Hélder, irmãos dos pobres. Um testemunho no ano de seu centenário
Luiz Alberto Gómez de Souza
Este ano se comemora o centenário do nascimento de D.Hélder Pessoa da Câmara, que nasceu em 7 de fevereiro de 1909 em Fortaleza, Ceará e faleceu no Recife, Pernambuco, em 27 de agosto de 1999. Desejo trazer meu testemunho de quem teve a felicidade de acompanhar alguns de seus passos, seja nos movimentos de juventude da Ação Católica, seja na sua atuação durante o Concílio Vaticano II.
Conheci D.Hélder Câmara de longe, na organização gigantesca do Congresso Eucarístico Internacional de 1955, em meio a toda uma imensa mobilização. Logo depois, convivi com ele na Ação Católica, de 1956 e 1958. Ele era o Assistente Geral da Ação Católica e eu fazia parte da equipe nacional da Juventude Universitária Católica. Aí acompanhei de perto o trabalho do Dom, como o chamávamos – ou Pe. Hélder –, no palácio São Joaquim, auxiliado pela maravilhosa e inesquecível secretaria Cecilinha e por uma equipe de devotadas auxiliares. Fui descobrindo aos poucos um D. Hélder humano, malicioso, político hábil, ouvindo e seguindo tudo, sem perder uma vírgula dos debates, através das pesadas pálpebras e olhos semicerrados.
Lá na sua terra natal, Ceará, no nordeste brasileiro, vivera, jovem sacerdote, a tentação da política e o equívoco de tantos cristãos daqueles tempos. Fez parte de um movimento de direita, a Ação Integralista Brasileira, no que considerou depois um pecado de juventude. Salvou-o a vinda ao Rio e a orientação e o apoio do Cardeal D. Sebastião Leme e do Presidente da Ação Católica, o grande leigo Alceu Amoroso Lima. Viveu uma experiência no Ministério da Educação, exorcizando-se da política direitista através da frieza do mundo burocrático. Ia rapidamente incorporar-se ao Rio de Janeiro, cidade aberta e acolhedora, com o entusiasmo de um velho carioca, guardando o inconfundível sotaque nordestino. Ainda o vejo, almoçando num daqueles típicos botequins da Glória, homem do bairro, gente da casa. Um dos bares ali ainda tem no menu, “filé à D.Hélder”.
Descobriu então os desequilíbrios terríveis do Rio e o mundo das favelas. Levou Monsenhor Montini, futuro Paulo VI, a conhecer o povão da favela Praia do Pinto, a dois passos do elegante Jockey Club, conjunto de barracos debruçados sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas. Começava seu trabalho na Cruzada São Sebastião, fruto de uma enorme sensibilidade para com o pobre concreto, correndo os riscos de um assistencialismo comum nos horizontes pastorais daquele tempo. Construiu um conjunto de moradias em terreno próximo à antiga favela.
Uma enorme contribuição à Igreja do Brasil: como indicado acima, foi ser Assistente Geral, ao final dos anos quarenta, da Ação Católica Brasileira. O velho modelo da A.C., calcada no esquema italiano, chegava ao seu esgotamento. A partir da experiência da JOC, com seu método ver-julgar-agir, surgiu, no bojo de uma enorme polêmica, a Ação Católica especializada, dividida por meios de vida. Apoiou o trabalho dos dirigentes e das dirigentes nacionais que pressionavam na direção mais ágil da especialização. Ali o então Pe. Hélder teve a companhia inestimável e a iniciativa segura de um grande amigo e companheiro, o Pe. José Távora, assistente da Juventude Operária Católica (JOC) – o “Eu”, como ele chamava, tanto se identificavam. Os estatutos da A.C. de 1950 introduziram definitivamente o novo esquema.
Durante todo esse tempo D. Hélder demonstrou uma enorme confiança nos leigos, em sua maioria jovens. Redigiu cartas, memorandos, textos, defendendo os membros das equipes nacionais dos movimentos frente a bispos recalcitrantes e temerosos. Quando a Juventude Universitária Católica (JUC), especialmente a partir de 1960, começou a receber toda sorte de críticas, escreveu, com seu estilo inconfundível, “informações objetivas sobre a JUC e o seu recente congresso nacional” onde, na sua qualidade de Assistente Geral da Ação Católica Brasileira e já nesse momento Secretário-Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), afirmava que “a JUC, longe de estar exorbitando ao tentar o esforço que vem tentando, está vivendo uma hora plena e merece o apoio e o estímulo do Episcopado” (agosto de 1960). Isso no momento em que a imprensa e os setores de direita se abalançavam contra esse movimento pioneiro e de vanguarda da Igreja. E isso é tanto mais significativo quanto era arcebispo-auxiliar do Cardeal do Rio de Janeiro, D. Jaime Câmara, extremamente reticente diante da JUC.
A partir de seu trabalho na Ação Católica construiu, em 1952, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da qual seria Secretário-Geral até 1964. Com a colaboração de D.José Távora, também arcebispo-auxiliar do Rio, e com várias ex-dirigentes da A.C., organizou o trabalho que João Paulo II proclamaria anos depois pioneiro e exemplo para o mundo. É muito significativo que uma organização episcopal tenha nascido a partir de uma experiência de movimentos de leigos. Em minhas visitas à CNBB, agora em Brasília, não deixo de lembrar que ela nasceu da prática anterior da Ação Católica e foi estruturada por ex-dirigentes dos movimentos, especialmente mulheres. Uma organização masculina e de bispos esquece facilmente sua origem de raízes leigas e a contribuição feminina.
Em 1955, durante o Congresso Eucarístico, D.Hélder participou de maneira decisiva da criação do Conselho Episcopal para a América Latina, o CELAM, onde teria marcada influência nos anos iniciais, com seu amigo chileno D. Manuel Larraín – D.Manuelito, como o chamava carinhosamente –, que nos anos 30, assistente dos universitários em seu país, discípulo de Maritain, sofrera ataques dos setores tradicionalistas e no momento era bispo de Talca.
Por seis meses, em 1963, juntamente com Lúcia, minha mulher, assessorei D. Hélder na preparação das sessões do Concílio Vaticano II. Com dificuldade traduzíamos e comentávamos os enormes parágrafos do que começou como o esquema XVII, depois esquema XIII e que finalmente levaria à Gaudium et Spes. Documento não previsto pelos organizadores do Concílio, esse texto, ponte fundamental com o mundo moderno, foi introduzido por pressão de cardeais e bispos centro-europeus e D. Hélder, assessorado em Roma pelo Pe.Lebret, tomou parte ativa nas negociações que o impuseram.
Durante o Concílio não apareceu na tribuna da sala conciliar. Entretanto, sua presença infatigável nos corredores, longas palestras com o Cardeal Suenens, o bispo belga Smedt e tantos outros, encontros e almoços na Domus Mariae, onde se hospedavam os bispos brasileiros, foram decisivos para os rumos abertos do Concílio. Ali organizou conferências para os bispos brasileiros e para um grande público, trazendo os melhores teólogos do momento. O Pe. José Oscar Beozzo no livro A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II, 1959-1965 (Paulinas/ Educam, 2005) indica a importância das iniciativas de D.Hélder. Pela correspondência diária a seus amigos do Brasil, “a família do São Joaquim”, como indicava nas cartas, é possível reconstituir o Concílio, nos seus impasses iniciais, gestos de audácia e sua presença discreta mas eficaz. As cartas estão traduzidas ao francês pelas edições Cerf e em italiano em Bolonha pela equipe de Giuseppe Alberigo.
Com o Pe.Gauthier e vários bispos, redigiu um texto sobre a Igreja dos pobres, documento que antecipou o que seria, anos depois, na América Latina, a “opção preferencial”. Em novembro de 1965, pouco antes do fim do concílio, depois de uma eucaristia na catacumba de Domitila, ele e vários outros bispos redigiram o Pacto das Catacumbas, com treze pontos, desafiando “os irmãos no episcopado” a levarem uma vida de pobreza, numa Igreja “servidora e pobre”, rejeitando todos os símbolos ou privilégios do poder e colocando os pobres no centro de seu ministério pastoral. Foi um prenúncio do que anos mais tarde seria a Teologia da Libertação.
Dizem que por esse tempo ele teria proposto ao Papa entregar o suntuoso palácio do Vaticano à Unesco, como museu e monumento internacional, retirando-se para um ambiente mais modesto. “Il mio cardinalletto”, o teria chamado carinhosamente João XXIII. Nunca chegou ao cardinalato; seria talvez um dos cardeais “in pectore” a que se referiu uma vez o Papa? As cúrias temem os profetas e os poetas e ele era ambas as coisas.
Quando terminou o Vaticano II (1965) D. Hélder e D. Manuel Larraín pensaram em um encontro de bispos latino-americanos para aplicar na região os resultados do concílio. Foi a base do encontro de Medellín (1968) que, entretanto, não se limitou a uma simples adaptação, mas foi além, como aqueles criativos concílios regionais dos primeiros séculos da Igreja, colocando o pobre como sujeito do processo, denunciando o pecado social das estruturas latino-americanas e incentivando as comunidades eclesiais.
Aliás, D. Hélder ficou até certo ponto insatisfeito com os resultados do Vaticano II. Ali faltara uma centralidade do pobre. Na verdade, o Vaticano II fora um concílio influenciado principalmente pela realidade européia, abrindo corajosamente caminho, na Gaudium et Spes, para um diálogo com a modernidade. Terminado o mesmo, em conversações com Ivan Illich, indicou que era preciso começar a preparar um Vaticano III. Illich tinha uma equipe internacional no Centro Intercultural de Formação (CIF) em Cuernavaca e começou a pensar nisso. Por indicação de D. Hélder, em abril de 1965, fui com Lúcia minha esposa e os três filhos para o México e me integrei na equipe e em sua preocupação pelo futuro da Igreja e da América latina.
Já no começo de 1964, em carta para o leigo católico mais eminente, Alceu Amoroso Lima, eu falara da necessidade de um novo concílio. Em março desse ano Amoroso Lima me escreveu: “Mas você é um militante, um engajado e diz, muito bem, que está no grupo dos que já estão preparando o Vaticano III, com toda razão…eu não verei o III. Você talvez. Mas de qualquer modo, eu no meu canto de velho reformado, você na linha de combate, estamos realmente preparando os caminhos para o Cristo do século XXI, como o fizeram os 72 discípulos, que ele mandou, ‘dois a dois’ prepararem os caminhos do senhor” (carta de 8 de março de 1964, semanas antes do golpe de estado no Brasil). Na ocasião, Amoroso Lima tinha praticamente a idade que tenho hoje e posso repetir o que me escreveu: chegarei a ver um novo concílio?
Anos depois, em 1981, em carta a seu amigo Jerónimo Podestá, ex-bispo de Avellameda na Argentina, que deixara o episcopado e se casara, D. Hélder se referiu a alguns sonhos que tinha. Eis o segundo: a realização, no ano 2000, de um Concílio Jerusalém II. Nos Atos dos Apóstolos (capítulo 15) se descreve o encontro em Jerusalém onde Paulo abriu o cristianismo para os gentios, saindo de um âmbito mais estreito judeu-cristão. Quem sabe, penso eu, um Jerusalém II não seria o momento de uma perspectiva ecumênica e talvez de um diálogo interreligioso? E concluía D. Hélder na carta a Podestá: “Não me preocupa o fato de que o mais provável é eu assistir este concílio da casa do pai. De lá quero ajudar a que ele se realize.” Morreu em 1999, um ano antes do ano 2.000 e um novo concílio ainda não se realizou.
Ficou o sonho, que no Sínodo Europeu de 1999 foi retomado pelo Cardeal Martini e, desde então, por muitos outros. Martini voltou a esse tema e a outros desafios da Igreja hoje em seu Colóquios Noturnos em Jerusalém, de 2008, traduzido em várias línguas. Num livro de alguns anos, eu perguntava no título: Do Vaticano II a um novo concílio? Olhar de um cristão leigo sobre a Igreja (Loyola, 2004). Mais do que um concílio convocado às pressas, é preciso um amplo processo de preparação conciliar, para tratar de temas congelados na Igreja atual (sexualidade e reprodução, celibato obrigatório, ordenação de homens casados e de mulheres, etc.). Dom Hélder, com suas intuições, carisma e audácias abriu caminho que pastorais eclesiais e outros bispos pioneiros (Luciano Mendes de Almeida, Pedro Casaldáliga, Mendes Arceo, Leônidas Proaño…) foram lançando como sementes de renovação e que poderão frutificar no futuro.
Voltemos ao Brasil. Seguindo a trilha do antigo Cardeal do Rio de Janeiro, D.Sebastião Leme, D. Hélder foi um interlocutor permanente do governo nos anos do “pacto populista” (1950-1963). Com os bispos do nordeste, em 1956, incentivou o presidente Juscelino Kubitschek a criar a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Tentação de usar o poder da Igreja diante do poder do Estado? Seu contato permanente com o povo, os favelados, os leigos da Ação católica, o defenderiam da tentação palaciana e de cair nas malhas dos poderosos que o cortejavam com insistência e com interesse. Nos tempos do desenvolvimentismo do presidente Kubitschek, esteve tentado a pensar uma “pastoral do desenvolvimento”, para a qual chegou a tender o episcopado latino-americano, no começo dos anos 60, à sombra da Aliança para o Progresso e o receio da transformação cubana. Logo depois, uma “pastoral da libertação”, que se imporia em Medellín, em 1968, encaminhava a prática e a reflexão em outra direção, mais evangélica e certeira. Os textos de D. Hélder nessa ocasião passam das propostas do desenvolvimento às exigências da libertação. Aos poucos as últimas foram se fortalecendo e para isso concorreria a situação política do Brasil depois de 1964, durante o novo “pacto autoritário” dos governos militares(1964-1984), onde ele seria “a voz dos sem voz e dos sem vez”.
Desde vários anos atrás, sua relação de arcebispo-auxiliar do Cardeal do Rio de Janeiro era difícil, oscilante e ao mesmo tempo filial. Diferentes em quase tudo, o sentido pastoral e a humildade de D. Jaime Câmara, no fundo consciente de suas próprias limitações, permitiam a coexistência nem sempre fácil com aquele bispinho incômodo, irrequieto e tantas vezes incompreensível para o velho Cardeal. Mas essa situação não podia perdurar. Em plena crise social e política, no começo de março de 1964, foi nomeado arcebispo de São Luis do Maranhão, o que o afastaria, para a conveniência de muitos, do eixo geográfico do poder. Estava em Roma quando ocorreu a morte súbita de D. Carlos Coelho no Recife, e foi transferido imediatamente para a Sé de Olinda e Recife, sem ter chegado a tomar posse em São Luis. É fácil aquilatar a importância estratégica de Recife, verdadeira capital do subdesenvolvido nordeste, para seu trabalho pastoral a partir daqueles anos. Lá também chegara D. Leme no começo do século, anteriormente bispo auxiliar do Rio de Janeiro e para esta última cidade retornara anos depois como arcebispo e cardeal. Repetir-se-ia o mesmo itinerário desta vez, como muitos de nós esperávamos? Outros eram os tempos, sobretudo do ponto de vista político, no período militar que começava.
Haveria também que lembrar rapidamente sua amizade com o núncio apostólico D. Armando Lombardi, certamente o melhor de todos os núncios que tivemos no Brasil. Quantos bispos, responsáveis mais tarde pela renovação da Igreja brasileira, não tiveram sua indicação sugerida nos almoços semanais entre os dois amigos? Vários tinham sido assistentes da Ação Católica. Em maio de 1964, D. Armando morreria, perdendo talvez a Igreja um excelente Secretário de Estado, como sonhava D. Hélder.
D. Hélder chegou ao Recife, para tomar posse, logo depois do golpe de Estado de abril de 1964, numa situação tensa. O cardeal Motta, até então presidente da CNBB, fôra removido de São Paulo para o refúgio de Aparecida do Norte. O Secretário-Geral afastava-se também do Rio. Veio outro sucessor, D. José Gonçalves, de posições conservadoras e bastante burocráticas. Começava um sutil remanejamento na CNBB, no que Charles Antoine chamou “a Igreja na corda-bamba”. Esse retrocesso foi interrompido felizmente anos depois, com a crise Igreja-Estado. Novas diretorias, com D. Aloísio Lorscheider e D. Ivo Lorscheiter enfrentariam o governo militar com valentia e recolocariam a CNBB no centro da defesa dos direitos humanos.
Seu discurso de posse no Recife foi claro e incisivo em sua opção pelos mais pobres, pela justiça social e pela liberdade. Mal recebido pelos poderosos, teve o carinho do povo simples que logo o compreendeu. Nesses primeiros anos em Recife, começo da ditadura, acolheu perseguidos políticos, visitou prisões e levantou sua voz de protesto. Os militares não se animaram a prendê-lo, mas torturaram e mataram um de seus sacerdotes mais próximos, o Pe. Henrique Pereira Neto, assistente dos jovens na diocese. Seu corpo, terrivelmente mutilado, foi encontrado num campo da periferia. D. Hélder sofreu muito e sentiu que era a ele que queriam atingir através do Pe. Henrique. Por esse tempo, Gustavo Gutiérrez terminava seu livro clássico Teologia da Libertação e a dedicatória foi a esse sacerdote-mártir.
D. Hélder, fiel ao pacto das catacumbas deixou o Palácio de São José de Manguinhos e foi morar nos fundos de uma velha igreja, a Igreja das Fronteiras, em dois cômodos, sozinho e sem proteção. Lá o iria ver, numa noite escura, um rude sertanejo que lhe entregou, chorando, a faca com que tinham encomendado sua morte. Hoje ali está o Instituto D. Hélder Câmara, onde se conservam seus objetos pessoais e farta documentação.
Surgiam às vezes comentários com respeito às ausências de D.Hélder. Ele trazia a inquietude e a “solicitude de todas as Igrejas” do apóstolo Paulo, itinerante entre Éfeso, Roma, Tessalônica e Corinto. As dioceses nasceram à sombra da estrutura feudal de uma Idade Média imobilista e de poucas comunicações. Eram espaços quase estanques por séculos, ligados ao centro da Cidade Eterna. Mais recentemente, tem buscado coordenar-se regional e nacionalmente e foi aliás D. Hélder, como vimos, um dos primeiros a compreender essa necessidade, na CNBB e no CELAM. Um homem irrequieto como nosso bispo cabia mal dentro do velho esquema territorial e administrativo. Sua retaguarda era coberta com eficiência e dedicação por seu bispo-auxiliar D.José Lamartine Soares, com quem trabalhara desde os tempos da Ação Católica no Rio de Janeiro, onde este fora assistente nacional da Juventude Estudantil Católica Feminina. Deveriam criar-se, talvez, bispos-itinerantes, peregrinos, mais próximos dos profetas do que dos guardiães do templo, anunciando a Boa-Nova pelos caminhos do mundo. Talvez inclusive isso não correspondesse tanto ao episcopado, mas a outra função eclesial e/ou eclesiástica. O monge Hildebrando, antes de ser o Papa Gregório VII, fora um grande viajante desse tipo.
D. Hélder, na Mutualité em Paris, em Nova Iorque ou em Tóquio, supria com seu carisma as deficiências lingüísticas e nas imprecisões da sintaxe criava uma semântica completada pelo olhar, a entoação e os gestos. Um jornalista uruguaio, Hector Borrat, assim o viu em Nova Iorque em 1969: “um entusiasmo vital que se derrama avassalador sobre os outros, uma soberana liberdade para expressar-se além do maior ou menor conhecimento do inglês, com os tons da voz e do olhar, com as mãos, com todo o corpo; um fabuloso histrionismo ao serviço das convicções mais profundas” (revista Marcha, 7 de fevereiro de 1969).
No exterior e no Brasil dos militares o consideravam um bispo radical e “vermelho”, o que realmente não era. Não havia que esperar dele os discursos políticos, mas os gestos que libertavam. Sua prática internacional e suas intuições iam além, muito mais longe das idéias e das ideologias, mesmo de suas decisões de pastor local.
Várias intuições são enormemente ricas e férteis e merecem ser retomadas. Um exemplo o indica: sua idéia das “minorias abraâmicas”. Ele, que lidou com governos, planos pastorais de emergência e de conjunto, descobriu a fecundidade que vem de baixo, dos grupos inovadores. Não são um “resto” ao lado do povo e à margem da história, mas os próprios e reais protagonistas da história que virá, os que fazem as experiências dinâmicas portadoras de futuro, o fermento capaz de transformar. Minorias com a “força histórica” dos pobres a que se refere com insistência Gustavo Gutiérrez, ligadas e em função de um trabalho de massas. E que no fundo expressam, congregam e organizam as grandes maiorias do povo oprimido e emergente.
D.Hélder repetiu mais de uma vez que era preciso fazer com algumas intuições marxistas o que Santo Tomás fizera com o pensamento “ateu” de Aristóteles. Na assembléia da CNBB teve sempre uma intervenção na hora oportuna e precisa, maliciosa e imaginativa, com que apoiou francamente as inovações, convencia os indecisos com o peso de sua autoridade e deixava sem argumento os conservadores e os tradicionalistas.
Deus lhe deu um organismo franzino e resistente. Precisava pouquíssimo – sono, comida –, realizava muito. Suas madrugadas longas e fecundas eram povoadas de meditação, leituras, muita oração, redação de cartas, textos e poemas. Poeta quase inédito – o Pe. José, como assinava quase sempre – deveria um dia ter publicados seus versos. Sua correspondência, por ocasiões praticamente diária, reproduz muito da caminhada da Igreja no Brasil. Constitui um arquivo inestimável.
Os meios de comunicação do Brasil, pelos anos da censura e da repressão, baniram sua imagem. Prescrição vinda por decreto, único argumento do arbítrio. Foi censurado em sua própria rádio diocesana. Durante a ditadura seu nome era proibido de ser mencionado. Era como se não existisse. Mas sempre esteve presente entre o povo simples e na opinião pública mundial, onde foi se tornando quase um mito. Um dia, aqui no país, tiveram que levantar o embargo. E durante a visita do Papa ficou patente o carinho do povo e de João Paulo II, que o abraçou dizendo: “D.Hélder, irmão dos pobres e meu irmão”. Seu nome foi quatro vezes indicado para o Prêmio Nobel da Paz, de 1970 a 1973. As embaixadas brasileiras em Estolcomo e em Oslo foram acionadas e jornalistas conservadores internacionais pressionaram fortemente para que não o elegessem. Numa das vezes (1973) foi preterido por Henri Kissinger…Foi “doutor honoris causa” em muitas universidades e recebeu inúmeras premiações internacionais.
Aposentou-se em julho de 1985, mas continuou morando no Recife, nos fundos de sua igreja. Seu sucessor, D. José Cardoso Sobrinho, tudo fez para destruir sua obra diocesana. Sofreu em silêncio e seguiu tendo uma forte presença internacional. Com uma imaginação sempre fértil, escreveu, em parceria com um compositor suíço, sua Sinfonia dos dois mundos. Acalentava um desejo que não chegou a realizar: produzir um circo para, em linguagem simples e alegre, dirigir-se aos setores populares e aos jovens.Em 1983, preparou um texto para o coreógrafo Maurice Béjart, que foi a base do balé Missa para o tempo futuro.
Foram várias décadas fecundas e enormemente criadoras. Podemos alegrar-nos de seu passado como padre e como bispo, servindo sempre, tantas vezes abrindo caminhos, apoiando, animando, olhando para a frente com uma invejável confiança. Belas recordações de D.Hélder se encontram no livro do monge Marcelo Barros, Dom Hélder Câmara. Profeta para os nossos dias (editora Rede da Paz, 2006). Excelente seleção de textos seus foi publicada por José de Broucker em Les nuits d’um prophète (ed. du Cerf, 2005). Uma biografia completa foi realizada por Nelson Piletti e Walter Praxedes, Dom Hélder Câmara, entre o poder e a profecia (editora Ática, 1997). José Oscar Beozzo, pelo Centro Alceu Amoroso Lima pela Liberdade, recolheu fotos e documentos de uma exposição itinerante criada em Paris pela Société des Amis de D. Hélder Câmara: Dom Hélder: memória e profecia (CAALL/Educam, 2009).
Alguns criticaram seu prestígio internacional e falaram, com uma ponta de ciúme, de vedetismo. Não percebiam o que ele realizava como serviço, “diakonia”, à Igreja universal. Mais, muito mais que bispo de Olinda e Recife, foi bispo de um vasto mundo sem fronteiras. Era sinal de uma Igreja que tem muito a anunciar nestes tempos de transição e crise onde, mais importantes do que os programas, são os gestos libertadores e a voz dos profetas clamando com força e anunciando mundos novos carregados de esperança. Deus nos trouxe D. Helder por muitos anos, dirigindo-se, com a palavra quente e o gesto significativo, aos pobres de todos os quadrantes, para anunciar a Boa Nova.