De hóspede a irmão
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Hóspedes somos todos os seres humanos que cruzam e recruzam a face da terra. Neste “vale de lágrimas” ou neste deserto, seguimos dia a dia, mês a mês, ano a ano, procurando abrigo. Do berço ao túmulo, percorremos todos os caminhos na condição de forasteiros, irremediavelmente estrangeiros. Mas hóspede é de maneira particular aquele que bate à porta. Dependendo de quem está do lado de dentro, ele pode tornar-se um irmão ou um estranho. No primeiro caso, a casa se converte em uma tenda. Permanece aberta ao forasteiro. Ali, ele encontra um abrigo onde repousar, alimentar-se e recuperar suas forças, antes de retomar o caminho. Em sua viagem solitária, o hóspede transformou-se em irmão. Poderá retornar quando quiser: seu rosto, antes desconhecido, passou a ser familiar.
Quando a casa se fecha, porém, revelam-se bem nítidos e estreitos os limites entre os de dentro e os de fora. Uns e outros seguirão sendo estranhos, não raro destilando indiferença, para não falar de hostilidade e agressão. Os territórios estão definitiva e taxativamente estabelecidos. A porta, em lugar de comunicação, passa a ser vista como fronteira intransponível. Não há qualquer possibilidade de ultrapassar essa barreira, seja ela visível ou invisível. Muros altos, grades com lanças pontiagudas, vigias armados ou não, olhos eletrônicos, cães raivosos e todos os demais sistemas de segurança, hoje cada vez mais sofisticados e caros, defendem os “nossos” da ameaça que vem do exterior, do estrangeiro, do diferente, do outro. Resulta que toda casa, ou se converte em tenda aberta ao viajante, ou está condenada a ser uma verdadeira fortaleza. E esta, ao longo da história, tem sido o túmulo de quem a habita.
O universo urbano, diferentemente do mundo rural, é cada vez mais marcado por essa atmosfera ambígua. Dinâmico e imprevisível, em contraposição à vida estática e hierarquizada do campo, a cidade abre as mais diversas perspectivas. Distintos idiomas, bandeiras, costumes, moedas, culturas e expressões lingüísticas aí se mesclam e se entrelaçam. O oxigênio que se respira no universo urbano tanto pode levar à liberdade quanto a outra forma de escravidão. Portas amplas e caminhos largos muitas vezes conduzem aos becos sem saída da droga, da violência, do crime, da prostituição, da exploração… E, inversamente, a porta estreita, ou o caminho pavimentado pelo código da ética, pode alargar-se a uma experiência inusitada de encontro e comunhão, a uma felicidade inesperada. No mundo rural, normalmente nascemos revestidos por uma série de convenções e relações que nos protegem contra as ameaças e as surpresas do novo. Já no mundo urbano, somos movidos, justamente, pela ânsia de novidades. A cada dia podemos desfrutar de experiências renovadas. Do nascimento à morte, trazemos a nudez exposta a todo tipo de variedade.
De fato, em toda cidade, seja ela de porte pequeno, médio ou grande, tropeçamos a todo o momento com forasteiros, com culturas, hábitos e rostos desconhecidos. Com maior razão ainda nas metrópoles ou megalópoles, marcadas por um cosmopolitismo crescente. Os fluxos migratórios, sempre mais intensos, diversificados e complexos, abrem o contexto histórico a novas formas de pluralismo cultural e religioso. Nesse território ambíguo, movediço e sempre minado, cada indivíduo constitui um átomo, cujas partículas giram em torno de si mesmo. É a chamada sociedade atomizada, onde os esforços e energias de cada um centram-se sobre os próprios interesses. As ligações de parentesco, de compadrio e de amizade, tão respeitadas e tradicionais na concepção do camponês, se “desmancham no ar” ao atingir as ondas do mar urbano, para usar a expressão de K. Marx no Manifesto comunista. O que nos remete à “modernidade líquida” de Z. Bauman.
Dessa atitude de estranheza frente a tudo e a todos, resulta com frequência o isolamento e a solidão. Se as multidões urbanas são formadas por seres desconhecidos, estes são igualmente ameaçadores. Com razão Sartre diz que “o outro é o inferno”. Facilmente nos tornamos caramujos, encerrados num casulo de revestimento impenetrável. Nesses imensos formigueiros humanos, corremos e nos estressamos o dia inteiro, de cá para lá e de lá para cá, com a pressa de quem foge de um perigo, ao mesmo tempo real e vago. Assim, diferentemente das formigas, permanecemos incomunicáveis. A nudez só poder expor-se diante do olhar que ama.
Nos ônibus, trens e metrôs; nas filas dos pronto-socorros ou hospitais; nos supermercados, restaurantes e serviços em geral, nas ruas, becos e praças… Instala-se uma disputa surda e muda por espaço e atenção. Solo propício para a formação de guetos, de grupos racistas, preconceituosos e discriminatórios, ou para as “tribos urbanas”, como lhes costumam chamar alguns estudiosos, em evidente desconsideração para com a vida e cultura indígena. Veneno e hostilidade fazem parte do cotidiano dessas “multidões solitárias”, diria David Riesman. Nos lugares públicos, defendemo-nos de toda sorte de comunicação. Até mesmo um olhar, inadvertidamente cruzado na rua ou no transporte público, pode significar uma ameaça ao direito de privacidade. O medo da invasão nos faz desviar imediatamente os olhos, como se eletrocutados por um choque. Cerramos todas as portas e janelas à curiosidade estranha.
Mas, em sua ambivalência costumeira, o ambiente urbano também engendra infinitas possibilidades de intercâmbio, de troca de experiências de confronto de valores e saberes. Se a casa é uma tenda, como no episódio dos discípulos de Emaús, abre-se sempre ao encontro (Lc 24. 23-35). Em semelhante caso, o convite – “fica conosco, Senhor, pois já é tarde e a noite vem chegando” – torna o forasteiro não apenas um hóspede, mas um anfitrião que, à mesa da partilha e da eucaristia, oferece pão e salvação. A cidade e cada um de seus cidadãos se revelam então terreno fértil à semente da evangelização. Da mesma forma que a terra ressequida anseia pela chuva, essas formigas humanas que habitam a cidade, verdadeiros desertos modernos, estão sedentas de água viva. Nesse solo hostil e estéril, a mensagem de Jesus Cristo tende a tornar-se semente fecunda em terreno novamente fértil.
É então que o outro – o hóspede – em lugar de “inferno” e de “problema”, se converte em oportunidade de encontro e reencontro. Se as autoridades políticas muitas vezes empreendem a “operação limpeza” para se verem livres dos imigrantes, para a Igreja não deve haver estrangeiros; somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai. É o que mostra enfaticamente a vida e obra de JB Scalabrini, considerado “pai e apóstolo dos migrantes”. Segundo ele, “a migração amplia para o homem o conceito de pátria”. Ou ainda, “para o migrante a pátria é a terra que lhe dá o pão”. Na passagem do século XIX para o século XX, o bispo de Piacenza personificava um muito marcado por rápidas e profundas mudanças. Uma “agitação febril e uma sede de novidades”, como lembra a cara encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, contemporâneo de Scalabrini, leva este a dar-se conta que o mundo andava depressa “e nós não podemos ficar para trás”. Daí a necessidade de adaptar-se à sociedade em constante movimento: “para tempos novos, novos organismos” de evangelização, conclui o bispo.
O fenômeno das migrações, mais abrangente hoje do que um século atrás, faz cruzar e recruzar povos e nações. No confronto dinâmico e aberto entre culturas diferentes, a identidade se faz, desfaz e refaz, numa circularidade recíproca e dialética. O outro, como alerta Levinás, “é o caminho para chegar a mim mesmo”, o cristal onde se espelha minha alma. Tem muito a comunicar “não apenas sobre si, mas também sobre mim”, complementa Gadamer. Por outro lado, a revolução dos transportes, das comunicações e da informática põe, a cada hora e a cada dia, numerosos hóspedes às nossas portas. Hóspedes que interpelam e exigem novas formas de convívio e relação.
Relação tanto mais forte, quando a transplantamos para o encontro com o totalmente Outro. “Já estou chegando e batendo à porta; quem ouvir minha voz e abrir, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20). Novamente aqui, como no episódio bíblico do Carvalho de Mambré (Gn 18,1-6), o outro/estranho/diferente procura romper fronteiras para tornar-se familiar. Se a porta se abre, o hóspede se converte em irmão e senta-se à mesa. Através do encontro pessoal com Deus, o Hóspede com letra maiúscula, vem habitar nossa tenda, oferecendo no altar da vida pão e salvação.
Nesse caminho místico de um povo hóspede e permanentemente a caminho, a espiritualidade ganha novo sabor. Se é verdade que aumenta o número de hóspedes ao nosso redor, não é menos certo que todos seguimos como hóspedes na vida terrestre, com o coração ansioso pela pátria definitiva. Nessa perspectiva espiritual, o encontro com o diferente abre a possibilidade do encontro com o Transcendente; ou ainda, o encontro com o outro pavimenta a estrada que leva à casa do totalmente Outro. Melhor ainda, “o verbo se faz carne”; isto é, o grande Hóspede desce ao encontro de minha casa e, nela, vem comer e morar comigo. Humaniza-se para que possamos divinizar a humanidade.