De onde fala Boris Casoy?
Jaime Amparo-Alves
Na noite do dia 31 de dezembro, Boris Casoy fechou em grande estilo o jornalismo da mídia gorda em 2009. Para os padrões éticos da imprensa nacional, não poderia ter sido um fechamento melhor. No intervalo do Jornal da Band, o apresentador deixou escapar uma daquelas verdades guardadas no closet e disfarçadas sob o moralismo dirigido comum aos representantes da meia dúzia de redações do eixo Rio-São Paulo que comandam o jornalismo do país. Sob risos, Boris disparou: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”.
Ainda que o comentário, por si só, deixe transparecer o que pensa um dos mais respeitados âncoras do jornalismo brasileiro sobre os garis, a infeliz frase de Casoy apenas expressa a ponta de um complexo emaranhado ideológico que sustenta as distinções/hierarquias sociais em nosso meio e que tem na mídia um dos seus principais instrumentos. Mais do que ofender aos garis e aos telespectadores/as do Jornal da Band – e foi uma ofensa seriíssima -, a frase é expressão do jornalismo hegemônico que consumimos, que por sua vez deve ser contextualizado no campo das nossas relações sociais.
A intelligentsia brasileira já tentou explicar essa arrogância social, esse desqualificar de certos grupos, a partir de uma antropologia do jeitinho brasileiro – destaque para o famoso: ‘você sabe com quem está falando?. Tal antropologia, que tem Roberto Da Matta como seu maior expoente, identificou o desprezo às normas e as estratégias interpessoais de legitimação de poder e distinções sociais como regras da vida cotidiana. Marilena Chauí e Paulo Sérgio Pinheiro identificam na herança do Brasil autoritário (a primeira no mito fundacional do país, o segundo nos períodos de estado de exceção) certo autoritarismo socialmente implantado que faz com que as dominações de gênero, raça e classe social sejam sistematicamente reproduzidas em nossa sociedade e encontrem eco mesmo entre as ‘vítimas’ preferenciais da nossa tradição violenta.
Se o jornalismo, como prática social, é reflexo da sociedade, então é razoável crer que o fazer jornalístico também carrega em si as mazelas e vícios sociais do seu tempo. É razoável, mas poucos têm reconhecido esse pertencimento/afinidade jornalística com os padrões perversos de reprodução das desigualdades e hierarquias. Nas redações a autocrítica nestes termos é quase impensável. Desde a faculdade, jornalistas são semi-deuses/semi-deusas com o dedo em riste, prontos para – a serviço dos patrões – destruir biografias, criminalizar movimentos sociais, negar a existência do racismo, investir no caos…..
É a arrogância jornalística que entra em discussão aqui, não apenas no sentido da arrogância editorial de um veículo se portando como detentor da ‘verdade’, mas também na postura dos/das figurões da mídia gorda – âncoras, comentaristas, apresentadores – que emprestam a cara aos editoriais dos veículos que representam. Seria ingenuidade não considerar um aspecto central neste contexto: o controle dos patrões sobre a atividade jornalística. No entanto, os figurões em questão só o são porque representam bem o discurso dos proprietários dos meios onde trabalham. Todos os dias eles/elas estão aí com o seu moralismo dirigido e sua arrogância – no horroroso jornalismo policial de fim-de-tarde da Band, na estética dissimulada/sofisticada dos editoriais dos telejornais da televisão brasileira – sem falar nos comentários arrepiantes de um tal Arnaldo Jabor no Jornal Nacional…. E por aí não pára…. vide os textos indigestos dos colunistas de jornalões como Folha, O Globo e Estado, replicados na imprensa regional Brasil afora.
Boris Casoy não está só no que pensa sobre os pobres. O seu insidioso comentário tem muito a nos dizer também sobre o que pensam os nomes da mídia grande sobre sua função social. O desprezo pelos pobres e a intimidade com os centros de prestígio e poder não encontra eco apenas no plano político partidário onde uma certa afinidade com o discurso dominante orienta a prática ‘jornalística’ contra os partidos de orientação mais à esquerda. Também no plano social, o preconceito de raça e de classe recebe roupagem moralista e aparece explícito na criminalização dos movimentos sociais, dos moradores das áreas urbanas pobres, das pessoas em situação de rua….. Quem não se lembra das capas históricas da revista Veja sobre o MST (matéria de capa ‘A tática da baderna’ de 10/05/2000, por exemplo)?.
“Que m…, dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho”. Ta aí…. Boris Casoy bebe da mesma fonte que sustenta o nosso fascismo social – como empregado por Boaventura de Souza Santos – e que é amplamente difundido na humilhação diária a que são submetidos jovens negros no jornalismo policial e seus repórteres com suas justificativas cínicas às mortes de supostos ‘bandidos’ nos ‘confrontos’ em ações da polícia, na adjetivação preconceituosa dos protestos urbanos por moradia ou na criminalização das mobilizações pela reforma agrária, na difamação da luta dos afrobrasileiros por ações afirmativas.
Assim como o presidente-metalúrgico agride a sensibilidade depurada dos nossos ‘gatekeepers’ dos jardins, ao escandalizar Casoy, o gari – “o mais baixo na escala do trabalho”- de certa forma expõe de onde falam os formadores de opinião da mídia gorda. A crítica dissimulada que fazem do poder a partir de uma retórica humanista cínica e vazia, não esconde o lugar social e os valores que representam.
Aperte o cinto: concentrado em meia dúzia de redações no eixo Rio-São Paulo, o jornalismo hegemônico segue firme na sua promessa cretina para 2010. A contar pela maneira como Casoy iniciou o seu ano de trabalho, não há tréguas: as redações continuarão sendo lugar privilegiado para a legitimação de padrões de dominação. A não ser que a sociedade reaja – junto com as/os jornalistas conscientes da sua responsabilidade social – em um movimento amplo pela democratização dos meios de comunicação e pelo controle social da atividade jornalística por meio de um Conselho Federal de Jornalistas – garis, domésticas, nordestino/as, negro/as continuarão sendo objetos da violência simbólica e moral de quem deveria zelar pela dignidade humana. Isso é uma vergonha!
(Matéria publicada originalmente no site “Brasil de Fato“)
Elaine Mendes
jan 07, 2010 @ 22:17:56
Eu costumava quando criança brincar na vila da minha avó no bairro de Fátima aqui do Rio de Janeiro, próximo ao Centro da Cidade. E quando ia brincar sozinha com minhas amiguinhas falavam pra mim: “Não vá para a rua senão o lixeiro vai te pegar”. Realmente, o lixeiro, nossos garis, eram figuras que me assustavam, parecia que viviam num mundo a parte, sob leis diferentes, como se fosse um mal necessário.
Obviamente os nossos garis não me assustavam mais, porém confesso que na minha adolescência quase não reparava na presença deles, parecia que eles faziam parte da paisagem e só. Graças ao nosso desemprego e informalidade a profissão de gari ganhou status, é orgulho agora ser um funcionário da limpeza urbana, pois o que importa é ter emprego e se for estável melhor ainda.
Acho que o Boris nunca passou dificuldade financeira na vida sendo ele judeu, assim, o seu desprezo por eles é natural. Mas, espero que com esse episódio o Boris mude seus conceitos. Realmente não esperava isto dele, pois me parecia ser um homem sensato, conhecedor das dificuldades da vida por trabalhar com notícias. Vejo que não basta conhecer as pessoas por intermediários, deve-se conviver com elas para daí valorizá-las. Acho que o Boris é como eu na minha adolescência, simplesmente ignora os garis quando os vê pelas ruas.
É… Boris, mas acredite ou não há garis que assistem seu jornalismo. Talvez ele pense que só os profissionais liberais e empresários o assistem, por isso seu descontentamento ao ver um grupo de garis desejarem Feliz 2010.
Com este episódio fica cada vez mais nítido que o jornalismo não é imparcial. Eu já o sabia pelas notícias relacionadas a Igreja Católica, se eu assisto ao jornal da Record só se fala de padres pedófilos e quando há algum debate sobre a Igreja Católica, vide a escolha do papa, convidam somente debatedores desligados da Igreja como o Leonardo Boff.
Isto é uma vergonha!
Mariah/ES
jan 07, 2010 @ 22:18:16
Excelente reflexão, Jaime. Vamos divulgá-la. Fiquei indignada, quando li essa deplorável declaração do referido jornalista, na internet, (aqui em casa, Globo, Band, SBT e Record ta tudo bloqueado) há muito tempo.
Agora é a nossa vez: “Isso é uma vergooooooooooooooooonha!”
Tiemy Yamada
jan 08, 2010 @ 05:03:19
Quando recebi um email falando desse infeliz acontecimento juro que demorei a acreditar. É triste ver que jornalistas como ele pensem dessa forma, a gente até leva um balde de agua fria, e parece que o mundo não vai ter jeito mesmo. Enquanto existirem pessoas que veêm os demais de cima pra baixo e praticam este tipo de preconceito acho dificil que o nosso país levante no quesito social. Infelizmente.
TATIANA JURKSTAS CAPILLE SALLES
jan 08, 2010 @ 08:36:36
Fiquei sabendo de tal fato pelo comentário do Padre Julio no Twitter e imediatamente acessei ao You tube para ver.
É mesmo ” uma vergonha!!!!!!!! ” Mariah/ ES, como ele mesmo gosta de dizer tanto por aí , um verdadeiro absurdo, uma falta de respeito e um tantão de preconceito, uma ofensa sem tamanho , a pura demonstração de sua opinião ” do alto ” da sua arrogância , isso sim !
Mas, claro, não me refiro ao fato de vazar o cometário, da ” gafe ” como dizem, mas sim, do pensamento , da opinião de Casoy à respeito dos menos favorecidos. O mais baixo da escala de trabalho ? Ahá ! Será que ele nunca percebeu que cada qual tem sua importância na sociedade, e que, de verdade, nenhum é mais importante do que o outro?
Mais favorecido sim, mas não mais importante ….
Afinal, quem cuida da limpeza da rua onde ele mora ? quem cuida da casa dele ? quem faz as unhas dele e da esposa dele ? quem cuida do gado, que produz o couro do sapato dele ? Ele vai fazer tudo isso ? Nãoooooo, ele PRECISA sim, respeitar o gari, a faxineira, a manicure, o produtor, e valorizar a importância de cada um !
Mas gente que pensa assim, não muda … infelizmente ! E são tantos …. o pior é isso !
Vejam no You Tube Casoy :
*** falando mal dos garis ( http://www.youtube.com/watch?v=RgH0w5XUcjA ).
*** pedindo desculpas ( http://www.youtube.com/watch?v=_esZYkpcFS8 ) .
Rodrigo
jan 08, 2010 @ 11:13:35
O texto é muito bom, as referências que ele traz complexificam o debate e mostram as raízes desse pensamento preconceituoso que, infelizmente, é a tônica de nossa classe média conservadora, de onde vem a maioria dos jornalistas. A mídia, assim, acaba sendo auto-referente: classe média escrevendo para a classe média. Mas sou otimista. A internet e a democratização da informação tem promovido uma reação como — para ficar nas palavras do nosso presidente — “nunca antes na história desse país”. Algo que, imagino, não teria sido possível pouquíssimos anos atrás.
Dirlene ramires
jan 08, 2010 @ 15:26:56
juro ,que nem sei como começar.Poucas coisas me deixam tão indignada como o preconceito.
Gosto de me manter informada ,assisto J N ,gosto de debates no radio,aprendo muito.
Mas confesso que a atitude deste S.r,me deixou sem folêgo.
Justo quem vive com o dedo apontado para os erros dos outros,numa atitude de reprovação,esqueceu que ,trêz dedos apontavam em sua direção.
Você pode enganar algumas pessoas por algum tempo, mas não podera´faze-lo o tempo todo.
Um dia a mascara cai! Por isso creio firmemente que existe um Deus no céu ,que possivelmente ,conduziram as mãos dos operadores,de áudio,para que a verdadeira face fosse mostrada.”Pois,nada ficara escondido,na face da terra”
So lamento que ,eu ouvi no radio hoje ,que estão querendo demitir os profissionais que deixaram o áudio aberto!Lamentavel se isso for verdade!
Damos banho na criança que esta suja .Em vez de jogar a agua suja fora,jogamos a criança?
Só pode ser uma brincadeira de mau gosto!Isso sim é uma vergonha!!!!Arre!!!!!
teresa norma
jan 09, 2010 @ 00:41:25
O arrogante Boris deveria descer do seu caixote de maçã e ler Monteiro Lobato pra começar a aprender sobre nosso querido Brasil e nossos mais queridos ainda brasileiros
Monteiro Lobato, fazendeiro de Taubaté, no interior de São Paulo, escrevera dois artigos para o jornal “O Estado de São Paulo”, nos quais se queixa sobre os caboclos do interior, inadaptáveis à civilização. O artigo com maior repercussão foi justamente sobre Jeca Tatu, figura criada por Lobato para descrever o caboclo que vegeta de cócoras, piolho-da-terra, capiau sem vocação para nada, a não ser a para a preguiça, “urupês” (parasitas que vegetam nos ocos das árvores e que acabam por matá-las). O nome Jeca virou sinômino de bobo, ingênuo.
Monteiro Lobato virou escritor e a figura do Jeca tornou-se famosa no país. Lobato percebeu, então, que os caipiras eram barrigudos e preguiçosos por motivo de doenças e não por opção. Assim ele se arrependeu de tê-los ofendido, pediu desculpas. Escreveu novas histórias nas quais o Jeca conseguiu curar suas doenças, comprou uma fazenda e ficou rico. A figura foi utilizada pelo político Rui Barbosa, que fê-lo símbolo do descuido dos governos para com a população.
Jeca Tatu é um personagem criado por Monteiro Lobato em sua obra Urupês contendo doze historias baseado no trabalhador rural paulista. Simboliza a situação do caboclo brasileiro, abandonado pelos poderes públicos às doenças seu atraso e à indigência. “Jeca Tatu não é assim, ele está assim”. A frase de Monteiro Lobato, sobre um dos seus mais populares personagens, refere sua obra para além das estórias infantis e incomoda a elite intelectual da época, acostumada a uma visão romântica do homem do campo. Jeca Tatu, um caipira de barba rala e calcanhares rachados – porque não gostava de usar sapatos, era pobre, ignorante e averso aos hábitos de higiene urbanos. Morava na região do Vale do Paraíba (SP), distinta por seu atraso. O trabalho do escritor voltado para várias questões sociais, dentre elas a saúde pública no país, repercute na política e na campanha sanitarista da década de 1920, denunciando a precariedade da saúde das populações rurais, com impacto na redefinição das atribuições do governo no campo da saúde. Num primeiro momento, em artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, (1914), Lobato pensa o caboclo como uma praga nacional: funesto parasita da terra (…) homem baldio, inadaptável à civilização (…), responsabilizando-o pelos problemas da agricultura. A história do Jeca Tatu relaciona-se com a de Lobato. Segundo seus biógrafos, em 1911 ele herda do avô a fazenda Buquira, no Vale do Paraíba (SP), tornando-se fazendeiro. Desentende-se com empregados e cria uma figura desqualificada do caipira, considera-o preguiçoso demais para promover melhorias no seu modus vivendi. No entanto, no bojo das campanhas sanitaristas, Monteiro Lobato modifica sua análise do problema: Pobre Jeca. Como és bonito no romance e feio na realidade., transformando-o num novo símbolo de brasilidade. texto de Tom Milz
Rinalda
jan 09, 2010 @ 12:01:35
Realmente é lamentável o comentário do famoso jornalida, mas para mim não causa grande surpresa apenas uma enorme INDIGNAÇÃO. Quantas pessoas que julgamos serem plenas de inteligência, cultura, ponderação e outros atributos tais que consideramos especiais, não se revelam do mesmo modo? Para mim o atributo maior e que considero indispensável para o alcance da verdadeira Paz e Felicidade entre os seres humanos é estar repleto de HUMANIDADE. A ausência de HUMANIDADE nos faz seres iguais ao ser BORIS. Bastou apenas um minuto e então….a máscara caiu!… deixando revelar o seu desprezo pelos pobres, o preconceito de classe.
Eu também acredito na existência de DEUS, mas creio que Ele habita no coração de cada ser humano. Aquele que puder parar por um momento para escutar o pulsar do próprio coração vai poder experimentar a HUMANIDADE dentro de si, porque nesse momento DEUS estará lhe declarando: EU TE AMO!
Parabéns Jaime Amparo pela matéria!
Alaide Leite
jan 09, 2010 @ 16:16:05
Chamou-me a atenção no último parágrafo: “…o jornalismo hegemônico segue firme na sua promessa cretina para 2010” e “…as redações continuarão sendo lugar privilegiado para a legitimação de padrões de dominação. A não ser que a sociedade reaja…- em um movimento amplo pela democratização dos meios de comunicação e pelo controle social da atividade jornalística por meio de um Conselho Federal de Jornalistas”.
Como a sociedade vai reagir se recebe informação justamente desse “jornalismo hegemônico”?
Como começar o movimento pela democratização dos meios de comunicação?
O “Conselho Federal de Jornalistas” é pra quando mesmo?
Sinto-me impotente quando leio tais matérias e não sei o que fazer. Poucas pessoas acessam blogs como este e não adianta ficarmos apenas concordando com o texto, precisamos discutir como levar essas questões para a população.
Mariazinha
jan 09, 2010 @ 18:59:21
Foi lamentável a postura precoceituosa desse apresentador.
E infelizmente a verdade é que ele apenas verbalizou um pensamento que não é só dele, mas de muita gente.
Também sinto-me impotente, pois, além de não assistir a Band, o que mais posso fazer?
TATIANA JURKSTAS CAPILLE SALLES
jan 11, 2010 @ 14:15:33
Teresa Norma gostei mto do seu comentário : informações interessantes, verdadeiras , importantes e de gde contribuição.
Valeu !