Desaprender, uma tarefa cristã urgente
Víctor Codina, SJ
Desde nossa infância estamos habituados à necessidade de aprender: aprender a falar, aprender a brincar, aprender sempre novos conhecimentos e matérias na escola, colégio e na universidade, aprender a nadar, a dirigir, a tocar instrumentos musicais, aprender a usar as novas técnicas da computação, Internet e do mundo digital.
Hoje os grandes pedagogos fazem questão de que numa sociedade de profundas mudanças não basta aprender conhecimentos, o que se deve é “aprender a aprender”.
Na Igreja também estamos acostumados à necessidade de aprender: aprender a rezar, aprender o catecismo para a primeira comunhão, aprender os mandamentos e os preceitos da Igreja, aprender a conhecer a Bíblia, a liturgia, a doutrina da Igreja, os dogmas, os concílios, a doutrina social e os documentos da Igreja latinoamericana.
Tudo isto é muito certo e sem dúvida positivo. Então, por que falar de desaprender? Será um convite à ignorância, ao obscurantismo, à irracionalidade, ao infantilismo? Sem dúvida é necessário aprender e “aprender a aprender”, mas para que isto seja realmente possível muitas vezes deve-se aprender também a desaprender.
MUDANÇAS DE PARADIGMA
Para explicar este aparente paradoxo deve-se afirmar que ao que aprendemos normalmente se somam os conhecimentos anteriores, nossos conhecimentos crescem de algum modo quantitativamente, em continuidade homogênea com o que já sabíamos anteriormente. Mas às vezes se experimenta uma ruptura epistemológica com o anteriormente aprendido, há uma mudança de paradigma que nos obriga a abrir-nos para algo qualitativamente novo, inesperado, que não se pode justapor ao anterior. Isto que sucede em momentos de grandes mudanças culturais, acontece também dentro da Igreja. Neste caso deve-se começar por desaprender o até agora aprendido e abrir-se à novidade e reaprender. Mas isto não é tão fácil assim.
Sem dúvida, a memória é uma faculdade necessária para poder viver humana e dignamente. Sem ela não há vida humana, nem identidade pessoal, nem história. A amnésia e o Alzheimer são danos com trágicas conseqüências. Mas às vezes a memória nos coloca em apertos, enquista-se e endurece, impedindo-nos de avançar, arrogando-se a qualidade de juiz absoluto da verdade, não permite que fiquemos aberto ao novo, tanto nos conhecimentos humanos como na vida cristã. Na vida cristã há fixações tão fortes do aprendido no passado como algo eterno e imutável, que é muito difícil avançar sem antes desaprender. Não é esta a explicação dos inúmeros fundamentalismos, conservadorismos, tradicionalismos e da própria doutrina de Lefebvre?
ALGUNS EXEMPLOS CONCRETOS
Sem nenhuma pretensão de exaustividade, proponhamos alguns exemplos de idéias e imaginários coletivos que devemos desaprender.
Temos que desaprender a imagem de um Deus todo-poderoso, juiz terrível que nos vigia continuamente com seu olho policial e que quer encontrar-nos in fraganti para nos castigar e enviar-nos ao inferno. Se não desaprendermos esta imagem de Deus não poderemos abrir-nos ao Deus de Jesus, Pai-Mãe misericordioso e compassivo que quer nossa felicidade, e enviou seu Filho Jesus não para condenar senão para salvar e dar vida, e que nos comunica seu Espírito para que vivamos uma nova vida que nunca se acaba.
Temos que desaprender a idéia de que Jesus é um Deus disfarçado de homem, uma espécie de turista divino que desempenha o papel de homem, que sabe tudo e que passa por este mundo sem comover-se com a miséria humana. Se não abandonarmos esta imagem não poderemos conhecer o mistério de Jesus de Nazaré, homem como nós em tudo, menos no pecado, que se comove diante de nossas misérias, passa pelo mundo fazendo o bem, anuncia o Reino, aceita a morte como conseqüência de suas opções pela justiça e pela verdade e é ressuscitado. Jesus, através de sua vida realmente humana, revela-nos seu mistério profundo: ele é o Filho que o Pai enviou a este mundo para que, pelo dom do Espírito Santo, possamos viver a filiação divina e a fraternidade humana, para que tenhamos vida em abundância.
Temos que desaprender com urgência a idéia de que a Igreja se identifica com o Papa, cardeais, bispos e sacerdotes e recuperaremos a idéia de uma Igreja povo de Deus, formada por todos os batizados, que temos o dom do Espírito Santo e na qual somos membros ativos e responsáveis da comunidade eclesial, na qual cada um contribui com seus dons e carismas, hierárquicos e não hierárquicos.
Temos que desaprender a idéia de que fora da Igreja não há salvação e abrir-nos à vontade salvífica de Deus que é universal e por meio de seu Espírito faz chegar a graça de Cristo a todos por caminhos para nós misteriosos e Temos que aprender a dialogar e enriquecer-nos com todas as religiões da humanidade, que constituem o fruto do Espírito.
Temos que desaprender a idéia de que Maria é o centro da vida cristã, a boa mãe que nos protege e nos defende diante de um Deus terrível e justiceiro, e temos que recuperar a verdadeira imagem de Maria de Nazaré, mãe de Jesus e nossa mãe, mulher do povo e profética que nos encaminha a Jesus, único mediador entre Deus e a humanidade e nos pede que façamos o que ele nos diga, como ela sugeriu aos servos de Caná.
Temos que desaprender a idéia de que os sacramentos são fontes mágicas de graça e recuperar a idéia de que são sacramentos da fé, que só fazem sentido a partir da fé da Igreja, iluminam-se à luz da Palavra e exigem de nós uma resposta pessoal e comunitária.
Temos que desaprender a idéia de que as crianças que morrem sem o batismo sofrem, produzem castigos ou que vão ao limbo e abrir-nos a uma visão cristã mais evangélica e séria que crê que o Pai de bondade e misericórdia acolhe em seu seio a todos as crianças que morreram sem culpa pessoal e as introduz em seu Reino.
Temos que desaprender a idéia de que ser cristão consiste antes de mais nada em acreditar em verdades e praticar alguns mandamentos e recuperar a idéia de que só se começa a ser cristão por um encontro pessoal com o Senhor, que muda nossa vida e nos leva a seguir Jesus, pois sem este encontro pessoal nem os dogmas nem as normas se sustentam.
Temos que desaprender a idéia de que o sexto mandamento é o centro da vida cristã e que todo pecado deliberado em matéria sexual é pecado mortal, e abrir-nos a uma visão mais plena da vida cristã que deve estar centrada no amor a Deus e no próximo, na justiça, respeito e na solidariedade, horizonte onde se deve situar toda a vida cristã, incluindo a sexualidade.
Temos que desaprender a idéia de que o homem pode explorar impunemente a criação e, em compensação, recuperar a idéia bíblica de que temos que respeitar a terra e a natureza, não abusar de forma egoísta dela para lucro de de uma minoria, senão apreciá-la como dom de Deus que deve servir para o bem de todas as gerações.
Temos que desaprender o imaginário de que o purgatório é um inferno abreviado onde as almas sofrem o castigo do fogo e acreditar que em nosso encontro com o Senhor na morte é um abraço amoroso que ao mesmo tempo nos purifica de todas as aderências ao pecado.
A lista de temas que devemos desaprender poderia ficar mais longa, incluindo aspectos referentes à exegese bíblica, à moral, espiritualidade, escatologia, teologia do Espírito e da teologia trinitária e à noção da Providência etc. Bastam estes exemplos para mostrar o importante, necessário e urgente que é aprender a desaprender.
NÃO EXTINGAMOS O ESPÍRITO
O último motivo de tudo isso não é só humanístico senão teológico: se o Espírito do Senhor é o que nos conduz cada vez a uma verdade mais plena (Jn 16,13), não podemos encerrar-nos num passado já superado, senão abrir-nos à novidade do Espírito e discernir os sinais dos tempos. Mas para isso Temos que aprender “a desaprender” muitas coisas. Assim poderemos reaprender a novidade do Espírito.